Steve Jobs e uma analfabeta

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 15.08.2020

A sala do cartório é pequena e faz um calor ruidoso porque o ventilador de teto não gera a ventilação que deveria e produz o barulho que não deveria. Mas a fila é tolerável e a gentileza profissional do atendente chega a parecer distinção.

Um jovem pai registra o filho — João Pedro. Mostra a tendência atual de retorno aos nomes mais antigos entre nós, após a moda que abusou de k, y e w, por nítida influência da cultura de massa norte-americana embrulhada e vendida em filmes.

Uma mulher em atendimento. Veio fazer a escritura de um pequeno imóvel residencial num bairro remoto. O atendente, ágil, apresenta-lhe os papéis e entrega-lhe a caneta. Mas ela hesita e suas rugas de sessenta anos tornam-se mais salientes. Com a caneta aponta a almofada de tinta, no birô do outro lado do balcão. Só assina com o dedo. É uma confissão que faz com a íntima vergonha de quem sofre flagrante ao cometer grave crime.

O atendente sai e volta com uma superior. A chefe encara a mulher analfabeta, que vai baixando os olhos até ficar mirando os próprios pés. Ela não tem vergonha? Não saber ler numa época dessas de tantas facilidades. Escolas em todas as esquinas, e de graça. Tomasse vergonha e fosse logo se matricular num curso de alfabetização.

Escondendo com os outros dedos da mão direita a mácula de tinta negra do polegar, a mulher se retira. Quer, precisa chegar logo em casa para, com água, sabão e muita persistência, purificar-se dessa mancha de pecado. Mas terá de enfrentar três ônibus e dentro deles ir protegendo o dedo da vergonha.

Serei atendido agora. Venho apenas autenticar cópias de documentos de identificação pessoal. Sobre o balcão se espalha o jornal do dia, que traz a notícia da morte de Steve Jobs.

Previamente santificado pela mídia e pelo capital, a primeira página estampa um Jobs esquálido, mas alegre, numa atmosfera celestial. Ao lado, a maçã de seu milagre, que aparece com traços ambíguos, deixando-se entender tanto como a maçã-símbolo, quanto como uma vela. Ambiguidade que é reforçada pelo aspecto da folhinha no centro da fruta, que dá a impressão da chama da vela.

“Gênio mudou nosso modo de viver” — Grita em letras grandes a manchete, e não há exageros. É, aliás, lugar-comum chamar de gênio a alguém que teve rara compreensão das regras do jogo do mercado, captou a natureza exata do desejo dos consumidores e criou produtos de informática que atraem pela plástica da forma e conquistam definitivamente pelo desempenho.

Onde está o equívoco? Na construção da imagem de um Jobs benfeitor da humanidade. Têm os fãs que aparecem em fotos laterais no jornal o direito de chorar seu ídolo, que, de um mal devastador, morreu no auge da vida produtiva. Mas eles correm o risco de estarem chorando o ídolo errado. É preciso que saibam o que estão perdendo. E estão perdendo e eternizando o homem que revolucionou a moderna felicidade portátil, materializada em fascinantes aparelhos. Mas não ficam órfãos de alguém que tenha deixado à humanidade a herança de um mundo melhor.

Henry Ford mudou radicalmente a forma pela qual nos deslocamos, com a invenção da linha de montagem e a construção de automóveis em série. Passamos a chegar muito mais rápido. Mas é necessário perguntar: — aonde mesmo é que estamos indo?

Steve Jobs transformou a essência das práticas comunicativas entre as pessoas. Com os mágicos aparelhos vivemos conectados todas as 24 horas do dia. Passamos a nos comunicar mais rápido. Mas também é indispensável a pergunta: — O que estamos comunicando?

Não pode sequer uma difusa cogitação condenar Jobs pela condição marginal da mulher analfabeta, que deve estar ainda cumprindo o primeiro de seus três ônibus até chegar a sua periférica residência.

Entretanto, se ele não é culpado pela defasagem de cinco mil anos em que se encontra a pobre mulher, nada fez concretamente para diminuir a distância entre os que já vivem no futuro e aqueles que ainda se encontram a cinco milênios de nossa era — no estágio anterior à tecnologia da escrita. Também não acho que isso fosse obrigação sua.

Assim, flores, choro e preces à figura do gênio visionário que revolucionou o universo da informática e da telecomunicação. Mas nenhuma pétala, lágrima ou invocação à imagem do benfeitor da humanidade, que este não é Steve Jobs.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria)