Cauquelin ou coqueluche vanguardista?

Por

Ivan Marinho de Barros Filho*

Em 21.08.2020

Pelas barbas de Bakunin, que indefinição sem fim é esta?! Li uma entrevista da esteta francesa Anna Cauquelin dada a Olívia Mindêlo e, confesso que me surpreendi com uma intelectual de 85 anos procurando chifres em cabeça de cavalo.

Desde o início do século passado que o Tio San, agora com tentáculos espalhados pelo mundo, insiste em transformar a arte em imitação da vida e valorá-la, não valorizá-la, monetariamente, impondo-a como eterno processo, algo relacionado com o porvir, explicado como inexplicável, algo assim como se não fosse algo, ou quem sabe, será que seria? Uma síndrome da perpetuação vanguardista que nega a vanguarda e, por isto, quer ser vista como vanguarda da vanguarda. Um adolescente que não sabe se é adolescente, mas que, por ser adolescente, acha que tem nas mãos o mapa da verdade, a verdade do presente, hedonista, sarcástica, intocável, irrefutável, onipotente.

A Cauquelin, com linguagem agressivamente desafiadora, é capaz de afirmar que a Filosofia, até a década de 1960, foi simplesmente História da Filosofia, como se pudéssemos historicizar algo se este algo não houvesse existido, uma ficção. Depois diz que a Fenomenologia, uma teoria que vislumbra o mundo sob uma perspectiva conceitual, não é uma filosofia.

Entre outros “conceitos”, a esteta exalta o do antiessencialismo, afirmando que a obra deixa de ter um “por si”. Explica que “a partir da Arte Moderna” a estética apresentou-se como uma visão essencialista “ocupando-se do artista, da obra, da criação…”. Depois, superado o lapso de memória, lembra que o Romantismo também cultuava a obra. Fala que Pierre Bourdieu é superficial, se preocupando muito com a temática do Mercado, no entanto demonstra, ela mesma, admitir a importância do Mercado para a arte atual. Se a Anna Cauquelin considera o Bourdieu superficial podemos configurar aqui o supremo conceito do “sujo falando do mal lavado”.

Tudo é aparentemente contraditório. Ao falar de sua militância não essencialista diz que esse pensamento se volta a entender como funciona a arte, “a tecer uma reflexão sobre a arte”. Reflexão sobre o quê? Sobre a sobreposição de cores ao acaso, sem intenção, sem, ao menos, razão? E como, se for por razão, filtrá-la de sensações, de sentidos, de identificação, de significados, de história? Será que não existe uma confusão no campo analisado? Será que a senhora francesa quando vai ao Louvre ou ao Goggenheim não experimenta arte e outra coisa qualquer como tecnologia a serviço do nada, da apatia, do insignificante, dos tecidos que vestem o Rei Nu da fábula, tão bem citado por Affonso Romano no livro Desconstruir Duchamp?

O perene processo contemporâneo não condiz com a motivação da criação artística, a de que o mundo não é suficiente. Ao contrário, parece expressar que a concepção contemporânea se tornou uma extensão acéfala da própria realidade, alegando que toda possibilidade de novidade se havia esgotado, como se houvesse esgotado as expressões, ao ponto de Ad Renhardt pintar de preto a tela que daria ultimato à pintura. Tem conceitos atemporais, como o de valor para Sócrates, como o da razão estética para Mondrian, que motivava a criação pela insatisfação com a realidade.

Engajado no estratagema mercadológico de eliminar a experiência estética e substituí-la por conceitos, a esteta menospreza o interesse de Bourdieu “com os distintivos sociais inseridos nos processos de arte, do gosto e do público”, como bem argumenta a jornalista Mindêlo, sem perceber que é exatamente aí onde se dá a relação da criação com o criador através de sua identidade cultural, onde o objeto artístico ganha significado, tornando-se inesgotável e realimentando no processo social sem precisar, sequer, dar por isso.

A Cauquelin faz algumas declarações sintomáticas nesta perspicaz entrevista. Diz, por exemplo, que “a estética tinha um papel até a arte moderna, mas agora está perdida”. Diz que não gosta da história porque não gosta de data…. que a arte contemporânea “é um esboço de um mundo diferente”, um mundo que ela não consegue enxergar… que “é um instrumento para entendermos o mundo em que vivemos e não para abrirmos as portas para um outro mundo, como se fosse um paraíso”. Parece que, com a abertura das possibilidades surgidas com a arte moderna, quando os traços culturais se impunham como grande diversificador das expressões mundiais, precisou aparecer uma elite, ávida por continuar intangível para os “insignificantes” mortais – aqueles “pobres-coitados” predestinados pela condição social, a nada saberem a não ser obedecer ordens – confundindo criação com invenção, ao ponto de considerar arte uma máquina programada para excretar fezes, impondo o tempo a uma cultura historicamente construída sobre o espaço e negando ao homem o direito de sonhar, ou de negar, ou até de ter fé nem que seja no aristotélico Deus que não é criador nem criatura, é criação… Retroceder ao ponto de justificar a arte com a vida, quando só por falta dela se justifica.

A filósofa rechaça a história por cumprir a função de registro, como se a história tivesse que ser o espelho da filosofia, a procura de conceitos, por exemplo. A coisa parece transparecer um desejo narcísico de que tudo contribua para a acomodação de seu próprio pensamento. Com relação à fenomenologia, manifesta uma espécie de preconceito dizendo que insistem muito na intencionalidade… “Tudo que eu não gosto.”, aparentando um olhar autoritário, como quem julga um pensamento pela afinidade pessoal: a filosofia sob o crivo da observação estética, mesmo quando acha que a estética “agora está meio perdida”.

A Cauquelin demonstra evidenciar um pensamento necessário quando fala de Van Gogh, atrelando o artista a um museu ou a um galerista, como se o que divulga ou publica a arte fosse o que a justificasse, assim como os curadores atuais, que pensam (elucubram?) pelos coitadinhos dos artistas irracionais.

Um dia desses, depois de ter começado este texto, numa dessas homenagens de uma dessas TVs comerciais ao Jobs, assisti, com angustia, um jornalista chamar o inventor de artista, manifestando a esquizofrenia pós-moderna de tratar como criação artística as invenções. É claro que são diferentes as ferramentas da criação e as da invenção. A primeira, para sempre, será essencialista e se relacionará com os signos, com as sensações, com a unidade psíquica ou espiritual, com o não vivido, com o que nos falta; a segunda, com a necessidade real, tangível, objetiva, denotativa…

A pintura foi pouquíssima explorada e ainda tem muito o que dizer e o mundo continua o mesmo mundo em que uns se acham no topo do desenvolvimento e outros, milhões de outros, morrem de inanição. Enquanto isto, a Cauquelin, e tantos outros eleitos pelo destino, declara que “a arte se afasta do mundo das obras, dos artistas. Permanecem mais e mais longe!”

Por tudo isto iniciei saudando Bakunin e quero terminar saudando os cínicos, os estoicistas, os epicuristas, os anarquistas, como os artistas Van Gogh, Cícero Dias, Volpi, Sérgio Ferro, Flávio Rufino, Bispo do Rosário, Gilvan Samico, Corbiniano, Abelardo da Hora, Rodolfo Mesquita, Siron Franco, Zé Som… e os tantos anônimos que – ao contrário da Cauquelin e dos grandes banqueiros que, com olhar de cifrão, tentam reduzir a arte a invenção – ainda provam da inesgotabilidade da criação, mesmo sendo um quadro, um xote, uma escultura, um soneto.

Ad Renhardt fez de preto

O ultimato da pintura

E Wim Delvoye instalou

Sua máquina futura

Que como o seu autor

Cientista e inventor

Faz merda a criatura.

*Ivan Marinho de Barros Filho é professor, especialista em Economia da Cultura.

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