Enquanto os homens exercem seus podres poderes, a que(m) serve teu conhecimento? (ou quanto nos custa a ignorância do nosso povo?)

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 21.08.2020

Em homenagem ao Dia do Historiador, celebrado na última quarta-feira, no dia 19 de agosto, e se posicionando de modo contrário à reforma tributária pretendida pelo governo federal no sentido de extinguir a isenção de taxa de impostos sobre o mercado de livros, expressamente proibido pelo artigo 150 da Constituição Federal (que veda a instituição de impostos sobre livros, jornais, periódicos e papel destinado a sua impressão), o ensaio desta semana se concentrará em abordar origens coloniais e continuidades republicanas no tocante às práticas oficiais no sentido de, sutilmente, impedir a circulação de informação e conhecimento para as pessoas. Respaldam, ainda, as nossas reflexões, um importante exercício filosófico que pude empreender com educandos das graduações de Pedagogia de duas faculdades nos municípios de Vitória de Santo Antão e Ipojuca, ao longo de dois semestres, bem como as importantes contribuições de pensadores e pensadoras brasileiros, do porte de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Macaé Evaristo, Marilena Chauí, Maria Victória Benevides e Paulo Freire.

Quando se dedicam aos estudos a História da Educação no Brasil, comumente as matrizes curriculares demarcam como ponto inicial a presença dos invasores portugueses e o início do Período Colonial, ignorando, muitas vezes, que pensar em educação é reconhecer a sua existência por meio dos processos de ensino-aprendizagem que vão muito além da configuração tradicional de educação formal, que carece de certas sistematizações. É inegável, no entanto, a presença de povos nativos naquele território, que, a posteriori, seria denominado Brasil, como também é inegável a existência de partilha de aprendizagens entre aqueles povos, por milhares de anos antes do fatídico 1500.

Se não estudamos como se constituíam esses processos de ensino entre os povos originários é porque a empresa colonial portuguesa se assentou às custas do extermínio de milhares de pessoas, e, por conseguinte, do apagamento de suas culturas, histórias e memórias. Não exagera o filósofo, historiador, ambientalista e líder indígena Ailton Krenak ao considerar a existência, ainda vigente no Brasil, de uma guerra entre os invasores e os legítimos donos deste território, que dura quase cinco séculos.

Findado o período das guerras mais sanguinárias contra as nações indígenas, o doravante domínio português foi estabelecido com base em uma sociedade patriarcal, sustentada por uma economia agroexportadora, realizada em latifúndios e que empregava uma mão de obra compulsória. E, apesar de toda a resistência indígena e africana à escravidão, e de não poucas crises e questionamentos ao sistema, é lícito considerar o sucesso dessa empresa colonial, ao ponto de ter funcionado por quase trezentos anos, desde 1530 até 1822.

Esse modelo de sociedade, todavia, contou ainda com “um grande acordo nacional”. Aliás, se um coisa que podemos apreender da História do Brasil é que, a cada momento que as elites econômicas e políticas assumem os rumos do país, são firmados grandes acordos nacionais, nem sempre flagrados por gravações telefônicas e/ou denunciados em rede nacional de televisão, mas sempre dispostos a preservar dedos e anéis das elites ao tempo em que pressionavam adagas contra o pescoço das massas.

Aquele “acordo nacional/colonial” dependia da manutenção de uma massa iletrada e submissa aos ditames do que Raymundo Faoro chamaria de donos do poder. Já afirmava Jacques Le Goff que essa necessidade de se tornarem senhores da memória e do esquecimento, enquanto mecanismos de manipulação das mentes das pessoas, se tornaria uma obsessão dos grupos que dominaram e que dominam as sociedades históricas. Sob o ponto de vista desses grupos dominantes, a legitimidade da manutenção do controle das mentes das pessoas por meio da negação de seu esclarecimento, traduzido no acesso à informação e educação, se confirmaria alguns séculos mais tarde, quando, em 1789, conscientes de que a realeza na França não derivava de um direito divino, o rei perdeu seu poder, sua coroa e sua cabeça. Decididamente as “terríveis ideias francesas” não poderiam se disseminar para os outros países europeus muito menos para suas possessões d´além mar.

No caso brasileiro, a imprensa, símbolo da produção e disseminação de informações na colônia, só foi permitida após a chegada da família real portuguesa, em 1808. Tecnicamente, esse capítulo das guerras napoleônicas, que empurrou o rei e sua corte para se estabelecer na colônia, pode ser considerado uma primeira grande fratura no modelo colonial. Isso porque muitas instituições culturais, como bibliotecas, museus e centros de formação superior foram criados no Rio de Janeiro. O seu ingresso, porém, era facultado apenas à corte e seus descendentes, enquanto o povo seguia excluído do projeto de educação.

Nas palavras de Marilena Chauí: “Os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que elas são”. Interessava, portanto, às elites econômicas brasileiras o não-esclarecimento das pessoas que efetivamente sustentavam a economia por seu suor e sangue. Para tanto, a Companhia de Jesus assumiu a missão de ensinar aos povos nativos sobreviventes do extermínio/conquista a fé católica, mas fundamentalmente a língua portuguesa, já que não se cumpre ordens se não se entende essas ordens, e a passividade frente aos exploradores. Foi assim que o empreendimento colonial lusitano não considerou nenhum aspecto da cultura dos povos dominados, buscando impor uma língua, uma fé, um rei e uma lei!

O apagamento da história e da memória de muitas nações indígenas não se deu apenas nas guerras de conquista, mas no entendimento do padre Manuel de Nóbrega, em carta enviada à corte portuguesa, de que: “Os índios são papel em branco”.

Portanto, ao longo de mais de dois séculos, os jesuítas estiveram educando aqueles que viviam na mais próspera colônia de Portugal; sejam os curumins, sejam os filhos daqueles que vieram a esse território para comandar, na ponta do processo, a empresa colonial. Nesse sentido, a educação jesuítica se alicerçou em um modelo dual por meio do qual formavam-se dois grupos de “brasileiros”. De um lado, uma elite a quem era destinada a melhor formação para que, futuramente, ocupassem os cargos dirigentes do pais; e do outro, as camadas populares, a quem era destinada uma formação básica que lhes facultasse o mínimo para seguir as leis e continuar reproduzindo a dinâmica de exploração.

Nem a expulsão dos soldados de Cristo empreendida por Pombal, em meados do século XVIII, nem suas reformas ou mesmo as outras propostas de modificação da educação do século seguinte produziram qualquer mudança significativa na estrutura das relações de poder no Brasil. Salvo raras exceções, o povo seguia assistindo, bestializado, sem entender o que acontecia, até porque percebiam que, da colônia à independência e depois à República, nada os tiraria de suas condições marginais nos contextos sociais e também históricos.

No âmbito da educação, o século XX trouxe uma série de propostas de reforma, sendo o movimento escolanovista digno de nota. Um de seus principais nomes, Anísio Teixeira, considerava que “A educação como processo exclusivo de formação de uma elite, quando se mantém a grande maioria da população em estado de analfabetismo e ignorância é algo que compromete a soberania do povo por meio da democracia; e para que isso aconteça, é preciso fortalecer a escola pública”.

Um pensamento que traduzia muito das motivações dos reformadores escolanovistas. No entanto, as mais profundas mudanças seriam determinadas pelos interesses de Getúlio Vargas, um ditador carismático que fazia o povo pensar que a conquista de seus direitos na verdade eram concessões do “velhinho bonachão”. Seus interesses, naturalmente, iam ao encontro das vontades de uma parte emergente das elites brasileiras, que almejavam transformar a  economia nacional de agroexportadora para industrial. É nessa época que são criados os ensinos técnicos para que se formem indivíduos aptos tão somente a atuar no mercado de trabalho e na indústria. O ensino técnico, sabemos, não busca o despertar de reflexões sobre a realidade dos alunos, a construção de sua autonomia, de outro modelo de cidadania, tampouco de críticas ao sistema. Nesse contexto, advém a constatação de Darcy Ribeiro, ao olhar para o passado, para o presente e para o futuro da educação de que “a crise educacional no Brasil, na verdade não é uma crise, mas um projeto de poder”.

Nos anos 1950 emerge novamente um conjunto de propostas e métodos de educação que defende uma educação popular pautada na autonomia e no protagonismo dos sujeitos. A alfabetização de adultos era mais do que um nobre ideal; era uma condição revolucionária! Em busca de tornar, os até então iletrados, capazes de ler não só as palavras mas fundamentalmente decodificar o seu entorno, ler o mundo, constatar a própria realidade, e buscar modos de intervenção nela. Tais ideais, contudo, não admissíveis num país republicano que foi criado/inventado em 1889 e não facultava aos analfabetos o direito de voto. Alfabetizar pessoas pobres ao mesmo tempo que conscientizá-las de todos os apagamentos da história empreendidos pelos donos do poder era algo muito perigoso.

Nesse contexto, no fundo, Paulo Freire, entre outros defensores de uma educação transformadora, sabia que: “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.

O estado de exceção que se configurou no meado da década de 1960 e perdurou por mais de vinte anos tratou de vigiar, perseguir, aposentar compulsoriamente, prender e expurgar as ideias e as mentes de uma série de pensadores e professores, como Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Josué de Castro, Milton Santos, Paulo Freire e Sérgio Buarque de Holanda, entre muitos outros. Enquanto isso, a Ditadura Civil-Militar por meio de seu aparelhamento, procurou imprimir um caráter mais técnico e menos questionador, menos crítico ao ensino brasileiro. Afinal, como nos ensina a socióloga Maria Victória Benevides: “uma educação que forme cidadãos ativos, participantes, capazes de julgar e escolher – o que legitima uma democracia – é tudo aquilo que muitos governantes não querem; estes preferem governados passivos, sinônimo de súditos dóceis ou indiferentes”.

Chegamos à segunda metade dos anos 1980 com um país que se orgulhava, desde então, do direito de voltar a escolher seus representantes e da liberdade de expressão; esperançava-se com a iminência de uma Constituição cidadã; e precisava lidar com uma série de mazelas econômicas e sociais herdadas das duas décadas dos governos civis-militares. O “milagre brasileiro” cobrava a conta, e com juros. Quem, como eu, foi criança nessa segunda metade dos ano 1980 deve ter muitas e muito boas recordações, e talvez nem se lembre, mas  poucos lares tinham fartura; a inflação corroía salários e tirava alimentos básicos da mesa de milhões de brasileiros. A escola pública também pagava as contas de décadas, séculos de ausência de investimentos em estrutura e na qualificação e remuneração de seus docentes. O ensino seguia dual; para aqueles que podiam pagar, tudo, para os que não podiam, muito pouco ou quase nada.

Acerca desse momento de transição, a educadora Macaé Evaristo considera que: “O racismo estrutural da sociedade brasileira privou o acesso à educação para a maioria do povo o longo de todo o século XX; na verdade, apenas conseguimos universalizá-la para a população de 6 a 14 anos no fim da década de 1980 e começos de 1990. Nessa democratização, com a chegada dos negros, dos pobres e favelados, começa o discurso desqualificador da escola pública”.

Os anos 90 testemunharam a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e também da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96), e, mesmo depois de alguns avanços significativos nos primeiros anos do século XXI, seguimos com muitos gargalos a serem superados, como a erradicação do analfabetismo, a reestruturação física de muitas unidades escolares e a valorização dos profissionais da educação, por exemplo.

Sabemos o quanto custa a ignorância de um povo, porque ainda hoje vivemos as suas consequências. Sabemos também que nem todos são ignorantes; uns são vítimas de um modelo de sociedade que sempre negou ou dificultou a ascensão social às/das pessoas originárias de camadas mais humildes; outros negociaram sua alienação/ignorância e constroem, e legitimam um discurso perverso que mantém nas outras pessoas o “desejo pela caverna platônica”.

Já preocupado com o fôlego deste ensaio, a caetanear, esperançando em meu bom combate, eu quero deixar uma provocação: enquanto os homens exercem seus podres poderes e seguimos confirmando a incompetência de fundamentalistas cristãos e ridículos tiranos, a que(m) serve teu conhecimento se ele não sacia a sede e a fome de justiça social e de conhecimento do teu irmão; se ele não estanca a sangria nos pantanais, caatingas e cidades em geral; se ele não contribui para que tais retóricas se tornem em breve artigos de museu por caírem em desuso; se ele não estimula o aparecimento de novos Hermetos, Tons, Miltons, Tins e Bens e tais capazes de nos salvar das trevas e levar alegria ao mundo?

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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Foto destaque: Desenho de Victor Meirelles – www.coresprimarias.com.br