Um meteoro e outros

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 22.08.2020

Tantos são os acontecimentos recentes, bizarros alguns, deploráveis outros, todos dignos de reflexão, que o estoque de matéria-prima do cronista que se inclina ao mais factual encontra-se repleto.

Aqui está um grupo de extremistas que em nome de um deus junta pedras para alvejar uma menina – uma menina de dez anos – estuprada e grávida, cujo único crime foi recorrer à medicina.

Ao lado, um ministro da economia quer escorchar os leitores com aumento de imposto sobre livros. Que um burocrata neoliberal afirme tratar-se de um produto consumido pelas elites e que a taxação seria justa, incomoda, mas o que dói mesmo é o silêncio criminoso de alguns acadêmicos diante deste ataque à cultura.

À frente, estas pedras. São na verdade partes de meteoritos que caíram no Sertão de Pernambuco. O fenômeno lembra que esta brincadeira de mundo é um pouco antiga, pois, originários da formação do sistema solar, os fragmentos têm a idade contada em bilhões da anos.

Esta crônica não deixa de ser sobre esses três fatos. O primeiro um ato horrendo; o segundo, profissão de fé dos usurários; o terceiro, surpreendente. Mas o texto é especialmente a respeito de um quarto fato.

Numa loja da rede de supermercados Carrefour no Recife, um promotor de vendas falece de um mal súbito. Há filas de clientes passando compras nos caixas, por isso a loja não pode fechar.

No corredor, entre as gôndolas de leite e biscoito, um corpo indesejado. As pessoas estão fazendo suas compras e não podem ser punidas por uma fatalidade. A solução é isolar apenas o corredor. Guarda-sóis, como grandes pétalas, ocultam o cadáver inconveniente.

Uma parede de caixas de cerveja ajuda a delimitar o território do finado, isolando-o da área dos vivos, que estão cumprindo a sagrada dinâmica da oferta e da procura.

Como uma caixa desocupada, o corpo vazio de vida foi descartado. Não façam drama. É a lei natural da vida, a morte chegará para todos. O ambiente não pode abruptamente cerrar as portas. Há clientes e metas a serem cumpridas. Amanhã circulará uma nota de pedido de desculpas. A rede de supermercados hipotecará solidariedade à família. Entre os valores que defende, em primeiro lugar está a vida. E mudará o protocolo para futuros casos.

Volto à chuva de meteoritos. Se os hipócritas fundamentalistas que seguem um deus apedrejador e agiotas com carimbo de Estado não conseguiram acabar o mundo, é provável que ele continue existindo. Já a humanidade…

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.