A tempestade do aborto
Valéria Saraiva*
Em 24.08.2020
Indignada. É assim que ainda me sinto uma semana depois de ter assistido às cenas protagonizadas por fanáticos em frente ao Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM), na tentativa de impedir o procedimento de interrupção da grvidez autorizada pela Justiça. Segundo as nossas leis, em caso de estupro, mal formação fetal incompatível com a vida e risco de morte materna, o aborto pode ser realizado. No caso da menina, o objetivo da realização do aborto era uma questão de saúde, porque uma criança de 10 anos não tem estrutura física para levar uma gravidez até o fim, e de proteção à saúde mental da criança. Pois levar adiante uma gravidez que foi fruto de violência causa sequelas psicológicas as vezes até irreversíveis. Nesse caso a equipe médica está respaldada judicialmente para fazer o procedimento.
Em março de 2009 aconteceu um caso semelhante no Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP). Uma menina de 9 anos de idade estava gravida por consequência de estupro. Se levasse a gravidez adiante acabariam morrendo ela e o bebê. A equipe médica optou por realizar o aborto. Na época o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso, excomungou toda a equipe médica e alguns parentes da criança.
Dessa vez, o que está acontecendo é um sensacionalismo muito grande em cima dos fatos. Em pleno século 21, o aborto continua sendo um tabu. Não sou a favor do aborto feito como solução à irresponsabilidade dos casais que não usam os métodos contraceptivos e querem no aborto uma solução para seus problemas. Por isso, a educação sexual é tão importante. As pessoas tendo conhecimento dos métodos contraceptivos terão mais cuidado com gravidez indesejada. Daí eles podem se planejar para ter seus filhos de forma programada.
Mas esse não é o caso dessa menina e nem de tantas outras pelo mundo que foram vítimas de violência e que por medo ou falta de apoio da própria família acabaram não denunciando os agressores. A equipe médica tomou a decisão certa. Tanto para proteger a vítima como para retirar o embrião enquanto ainda não se desenvolvera.
A pergunta que não quer calar:
E se fosse a sua filha?
Infelizmente, a religião cega as pessoas. Faltou, nesse caso, empatia, e eu poderia dizer também que compaixão pelo sofrimento dessa menina. Elas estão transformando a vítima em culpada. Sei que perece difícil, mas temos que nos colocar no lugar do outro.
Essa menina vai precisar de todo apoio psicológico possível para suportar viver com esse trauma.
E o estuprador tem que ser punido e afastado do convívio da família da vítima.
Todos os dias, milhares de mulheres, crianças e adolescentes são estupradas. Geralmente o estuprador é alguém do próprio convívio da vítima: pai, padrasto, tio, vizinho, um amigo. Mas a criança dá sinais. Cabe aos pais ou responsáveis perceberem. Mudanças no comportamento, timidez excessiva – a criança tenta evitar contato com uma determinada pessoa, sente medo, ou demonstra uma alteração na forma de falar. Na escola, faz desenhos que mostram órgãos genitais. Cabe aos pais perceberem e procurar ajuda, para não chegar a esse ponto abominável.
O que me impressionou nessa história foi a total falta de empatia das pessoas que se reuniram em frente ao CISAM para protestar contra o aborto. Repito:
O que você faria se fosse a sua filha?
Parece que os papeis se inverteram; do estuprador não se fala e a criança vítima do estupro se tornou a culpada aos olhos da multidão.
É muito fácil julgar, mas tente só por um minuto se colocar na pele dessa criança.
Ela precisa da sua ajuda, não do seu julgamento. O que ela precisa é de alguém para apoiá-la. Alguém que olhe em seus olhos e diga: Estamos aqui para lhe ajudar.
Poderia passar horas falando sobre esse tema, mas vamos simplificar as coisas refletindo sobre essa frase do escritor norte-americano Matthew Quick: “Quando nosso coração está repleto de empatia, um forte desejo de eliminar o sofrimento alheio surge dentro de nós.”
Essa menina precisa de ajuda e não de condenação. Ela é a vítima. Não tentem transformar a vítima em culpada. Isso é crueldade.
“A violência destrói o que ela pretende defender: a dignidade da vida, a liberdade do ser humano.” (Papa João Paulo II)
Tem um versículo da Bíblia onde Jesus fala: “Deixe vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas.” (Mateus 19).
Essa criança está psicologicamente destruída, mas é só uma criança. Apenas uma criança.
*Valéria Saraiva é enfermeira, poetisa, cronista, autora do livro “Lírios, Tulipas e escorpiões” e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às segundas-feiras.