Percepções públicas da política e suas implicações para as respostas à COVID-19
Emanuele Sapienza*
Em 25.08.2020
O Latinobarômetro [1] é uma pesquisa anual de opinião pública que abrange cerca de 20 mil entrevistas em 18 países da América Latina e do Caribe.
Nos últimos 20 anos (1995-2018), as pesquisas do Latinobarômetro geraram verdadeiro tesouro em dados que podem ser usados para obter insights sobre um amplo espectro de questões.
Fizemos uma análise aprofundada desses dados para melhor compreender as atitudes em relação à política na região e como elas se relacionam com as percepções em outras esferas da vida, especialmente a econômica. A seguir, está uma visão geral do que encontramos e a razão pela qual isso é importante para as respostas à COVID-19.
Diminuição da confiança nas instituições democráticas
A satisfação com o funcionamento do sistema político na América Latina e no Caribe atingiu o nível mais baixo de todos os tempos em 2018, com três em cada quatro pessoas expressando um julgamento negativo sobre a vida política em seu país.
Há evidências de que essa insatisfação generalizada já começou a afetar o apoio à democracia como forma de governo na maioria dos países da região.
Em 2018, pela primeira vez, a porcentagem de pessoas que expressaram total apoio à democracia como forma de governo ficou abaixo de 50%, enquanto a proporção de pessoas que se descreveram como indiferentes entre regimes autoritários e democráticos atingiu 28%, o nível mais alto já registrado e o dobro do mínimo histórico (14%, em 1997).
Ao longo dos anos, mulheres e jovens têm sido menos propensos a expressar satisfação com o funcionamento do sistema político e também a expressar apoio incondicional à democracia como forma de governo do que o resto da população.
A crise causada pela COVID-19 apresenta riscos e oportunidades para o futuro da governança democrática na América Latina e no Caribe.
Por um lado, há terreno fértil na região para a noção de que os regimes menos democráticos são mais eficazes na resposta a emergências. Por outro lado, a COVID-19 abre espaços sem precedentes para reimaginar a política e restaurar a confiança nas instituições democráticas. Uma nova narrativa sobre a democracia é necessária para navegar nessa conjuntura complexa.
A importância da transparência e da justiça distributiva
O desempenho econômico percebido e a corrupção percebida parecem ser os principais motores da satisfação com o desempenho do sistema político, com base nos dados revisados pelo estudo. Esses dois fatores combinados explicam cerca de 80% da variação na satisfação com o funcionamento do sistema político entre os países da região no ano de 2018.
No entanto, nem sempre houve uma correlação tão forte entre o desempenho econômico percebido e a corrupção percebida, por um lado, e a satisfação com o desempenho do sistema político, por outro.
A análise das séries temporais revela que esse vínculo só começa a se consolidar a partir de 2008, possivelmente por causa de mudanças em percepções e expectativas causadas pela crise financeira de 2007-2008.
A região da América Latina e do Caribe entrou na crise da COVID-19 com percepções já muito negativas sobre o desempenho econômico e a desigualdade econômica. Somente 16% dos entrevistados da pesquisa em 2018 se descreveriam como satisfeitos com o funcionamento da economia, e impressionantes 80% dos entrevistados consideraram injusta a distribuição de renda na região.
O sofrimento econômico que acompanha a pandemia da COVID-19 provavelmente terá impacto significativo nas já tensas relações entre o Estado e a sociedade.
No entanto, os governos podem fortalecer a confiança – pelo menos em parte – adotando medidas anticorrupção apropriadas. Altos níveis de transparência na administração pública serão essenciais não apenas para garantir que as respostas à COVID-19 permaneçam livres de corrupção, mas também – e igualmente importante – para garantir que sejam percebidas como tal.
No pós-crise, a recuperação dos níveis do PIB – ou mesmo a redução do desemprego – provavelmente não será suficiente por si só para mudar as visões negativas sobre o estado das coisas públicas. Questões de justiça distributiva e percepções sobre a igualdade na economia pós-COVID também terão grande importância.
O papel da classe média
Uma análise dos processos sociais, econômicos e políticos relacionados à classe média é essencial para um entendimento profundo da dinâmica da governança na América Latina e no Caribe.
Deve-se notar, entretanto, que existem diferenças significativas nas percepções entre as pessoas que se identificam como “classe média baixa” e as pessoas que se identificam como “classe média alta” na região. Uma conceituação diferenciada da noção de “classe média” é necessária, portanto, para dar conta dessas diferenças.
O apoio à democracia como forma de governo nos países pesquisados pelo Latinobarômetro é maior entre as pessoas que se autodescreveram como pertencentes à classe “média-baixa” ou à “classe média”.
Notavelmente, esses grupos expressam apoio acima da média à democracia como forma de governo, apesar de uma satisfação abaixo da média com o funcionamento real da democracia e com o estado da economia em seus países.
Ao mesmo tempo, grande parte dos que se identificam como pertencentes à classe média baixa vive em situação de grave vulnerabilidade econômica. Além disso, considerando os níveis de insatisfação com o funcionamento do sistema político e a propensão para se engajar em manifestações, esse grupo parece estar entre os mais predispostos a se mobilizar fora das instituições políticas formais.
As políticas fiscais relacionadas à COVID-19 com foco muito restrito não só têm probabilidade de gerar consequências econômicas negativas, mas também minam ainda mais o apoio à governança democrática e exacerbam os conflitos sociais.
O espaço fiscal limitado continua sendo um grande desafio, mas, na medida do possível, será importante elaborar programas de proteção social que sejam inclusivos e considerem as circunstâncias da classe média vulnerável.
A pandemia da COVID-19 ameaça fazer o mundo retroceder décadas em termos de desenvolvimento humano sustentável. Ao mesmo tempo, a crise atual tem potencial para se tornar um divisor de águas ao abordar uma série de questões econômicas, sociais e ambientais de longa data.
Quando olhamos para os desafios atuais e futuros a partir da perspectiva do cidadão, uma governança inclusiva e eficaz será indispensável para construir um “novo normal” que não seja apenas “novo”, mas também “melhor”. É vital não perdermos isso de vista nos próximos meses, à medida que as respostas à COVID-19 se desdobram.
O documento está disponível, em inglês, aqui.
[1] Os países cobertos pelo Latinobarômetro são Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
*Emanuele Sapienza é Assessor de Governança do Centro Regional do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para a América Latina e o Caribe
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