A liberdade é um pássaro em voo fugidio

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 26.08.2020

Para os defensores ferrenhos do livre mercado, tanto àqueles que o fazem por interesse de aumentar o seu capital ou àqueles que o fazem pela ingenuidade de um dia “chegar lá”, a liberdade individual é a maior benesse do modelo capitalista. A livre concorrência é, nesse entendimento, vantagem e fator determinante para alcançar a liberdade. Yes, we can (Sim, nós podemos). A máxima norte-americana que expressa todo o patriotismo e vigor imperialista dos Hermanos do Norte, de nada valeria se não fosse o poderio do capital que se acumula nos engenhosos cofres de Wall Street. Aqui, porém, em nossos grotões tupiniquins continuamos a vislumbrar uma cartada de sorte para alcançar o apogeu da liberdade financeira e, consequentemente, o tão almejado lugar de conforto e bem-estar. Tudo isso, graças à liberdade que a livre concorrência nos concede, como muitos teimam, ainda, em afirmar.

O neoliberalismo é um sistema que se adapta muito bem às mudanças da contemporaneidade. Como um camaleão, vai se moldando às vicissitudes para enfrentar as intempéries da globalização e, ao mesmo tempo, fazendo desse mundo globalizado o terreno para as fartas colheitas monetárias, sempre à custa dos miseráveis que se amontoam uns sobre os outros na fatídica disputa para ocupar o espaço de altivez, impulsionados pela ilusão da ideologia da sociedade de consumo que insiste na ideia de que todos podem tudo.

O neoliberalismo se fortalece através de suas eficientes técnicas e estratégias de exploração do ser humano e de sua liberdade. Principalmente na sociedade do desempenho, na qual os sujeitos não são forçados ao trabalho, pois, na crença de que são seus próprios patrões, dispõem-se a produzir, porque entendem que produzem para si mesmos. Para Han, “Explorar alguém contra a sua própria vontade não é eficiente, na medida em que torna o rendimento muito baixo. É a exploração da liberdade que produz o maior lucro” (Han, Byung-Chul. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018, p. 11,12).

Isso mesmo, a sociedade do desempenho gera o sujeito do desempenho. Esse ser humano que ressurge com o espírito de empreendedor de si mesmo e que define como meta para a sua vida a incansável tarefa de produzir cada vez mais, pois a recompensa final, para ele, é conquistar a sonhada liberdade individual. Lutar pela liberdade individual é entregar-se à servidão do próprio isolamento de si. Essa é uma das mais eficientes técnicas de exploração neoliberal, pois fragmenta a dimensão da convivência humana, na medida em que isola os indivíduos e garante o acúmulo da riqueza. Fragmentar a dimensão do coletivo é fundamental para o fortalecimento do neoliberalismo, porque vai eliminando as possibilidades de movimentos contra-hegemônicos e formas de resistências ao socialmente estabelecido. No fundo, o que ocorre é a liberdade do capital ante a servidão do ser humano, que nessa condição já se torna um ser assujeitado, coisificado, esgotado em si mesmo, adoecido, desumanizado.

O neoliberalismo contemporâneo se reinventou para se adequar a esse novo século, principalmente ao alçar mão das novas tecnologias e das mais sofisticadas formas de comunicação para continuar exercendo seu poderio financeiro para melhor executar suas estratégias de dominação e de exploração. Contudo, apesar de toda sua adaptação, o capitalismo não muda a sua essência, continua sendo gerador das mazelas sociais mais severas e das formas mais drásticas de exclusão e de desigualdades sociais.

Como afirma o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (2010), “o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência” (Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 8,9). Nesse processo de exploração, o sujeito do desempenho na sua ânsia de conquistar a sua liberdade, explora a si mesmo e se consome até se exaurir completamente. O ápice desse esgotamento é a depressão e o suicídio.

A liberdade parece ser um pássaro em voo fugidio.

Assim é a liberdade tão sonhada para quem vê na sociedade de consumo a porta aberta para fazer esse voo transformado em liberdade individual. Han diz que liberdade originalmente significa estar com amigos, por isso afirma que “a liberdade é uma palavra relacional. Só nos sentimos realmente livres em um relacionamento bem-sucedido, em um feliz “estar junto” (2010, p. 11). Por isso, a liberdade individual, advinda desse processo de produção e desempenho, não passa de uma submissão que isola e escraviza o indivíduo. Como esse pássaro em voo fugidio, essa liberdade é frágil, solitária e sem direção, por isso é perigosa.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras.

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