Revisitando o Estatuto da Criança e do Adolescente (II). O trabalho infantil

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 31.08.2020

A sociedade brasileira não vê como violação dos direitos humanos as várias formas de exploração infantil, como o abuso sexual acrescido de prostituição e o trabalho infantil, cujo início, segundo alguns historiadores, coincide com o tempo de colonização e cresce com o desenvolvimento do país. Naquela época, além de servir para a manutenção da família, o trabalho era visto como uma forma de moralizar os comportamentos e a “formação” da criança  que deveria estar condicionada à prática de algum ofício.

Segundo Juliana Paganini,  a história social da infância no Brasil apresenta-se através de uma tradição de violência e exploração contra a criança e o adolescente, coincidindo com o início do processo de colonização.

Desde cedo as crianças filhas de famílias ricas ao completarem sete anos iam para a escola, e as  pobres iam para o trabalho. Não havia o reconhecimento da criança como ser em desenvolvimento físico, social e mental, o que deve ser observado em suas fases da vida até chegar à idade adulta.

Com a sociedade pautada pelo machismo, os meninos eram formados para o trabalho forçado, pesado, enquanto as meninas eram encaminhadas para o trabalho doméstico. Comum era que aos dez anos as meninas já tomassem conta de todos os afazeres de uma residência, como cozinhar, lavar a roupa da família e cuidar das crianças, Nessas circunstâncias, sempre eram vítimas de abuso sexual pelos homens da família para quem trabalhavam.

O Brasil fez a abolição da escravidão para outro sistema de trabalho sem reconhecer os níveis de exploração vivenciado por crianças e adolescentes, através de jornadas extenuantes em áreas insalubres, submetidas sistematicamente a acidentes.

Com a revolução industrial o trabalho infantil adotou outras características, porque as crianças foram submetidas a jornadas de até 14 horas, em atividades exaustivas, com movimentos repetitivos em máquinas inadequadas  à sua condição física.

Apesar da Constituição Federal aprovar em 1988, no seu artigo 227, que  a criança deve ser tratada como sujeito de direitos, a sociedade continuou legitimando o trabalho infantil como um meio de correção, reproduzindo o discurso da dignidade, honestidade e do bom caráter.

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Ao que acrescenta o Estatuto da Criança no seu artigo 5º: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”

A proteção integral que liberta a criança e o adolescente de vários tipos de exploração, entre os quais o trabalho infantil, deve ser executada através das políticas públicas. Crianças e adolescentes têm direito à creche e à escola para que desenvolva a sua sociabilidade, suas habilidades lúdicas, artísticas e fortaleça o aprendizado através da leitura e da escrita, considerando as suas fases de desenvolvimento.

O trabalho infantil, explorado no Brasil em várias modalidades, afasta a criança e o adolescente da escola, sendo que é reconhecido que a educação é um fator determinante para boa colocação no mercado de trabalho. Atualmente, embora proibido, crianças trabalhando são encontradas em todas as regiões do país, nos plantios de cana de açúcar, no cultivo da erva-mate e do fumo, nas carvoarias, no plantio do sisal, em fábricas de plásticos e vidros, na fabricação de tijolos, nas ‘casas de farinha’, correndo risco de morte, porque todas essas atividades ocorrem em regimes de escravidão e são inapropriadas à sua idade, à sua estrutura física, ao seu desempenho intelectual.

Trabalho infantil é crime e se insere no modelo econômico vigente como um meio de reprodução da pobreza, pois reduz as possibilidades de ascensão profissional futura, de maior remuneração e melhor emprego, representando a efetiva violação dos direitos fundamentais. Assim, “é muito provável que grande contingente de crianças e adolescentes submetidos ao trabalho infantil permaneça boa parte de sua vida nos estratos mais baixos da população, sempre submetidas a trabalho de níveis inferiores ou ao próprio desemprego”(LIETEN).

Aliás, o desemprego e o subemprego dos pais acompanhados da baixa renda familiar são apontados por estudiosos como fatores que impulsionam as crianças e os adolescentes a ingressarem na modalidade de trabalho infantil, sobretudo informal.

No entanto, é preciso ressaltar que o fenômeno trabalho infantil também ocorre pela forte tradição cultural. “É melhor colocar o menino para trabalhar do que ir para a rua e seguir para a marginalidade.”

Sabe-se, entretanto, que para a concretização dos direitos fundamentais da criança e do adolescente e a erradicação do trabalho infantil, não basta a participação na formulação de legislação ou de mecanismos estatais, mas, acima de tudo, se faz necessário a mobilização e a sensibilização da sociedade para a garantia real dos direitos assegurados na legislação vigente.

De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PnadC), em 2016 havia 2,4 milhões de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em situação de trabalho infantil, o que representa 6% da população (40,1 milhões) nesta faixa etária.

A maioria das atividades de trabalho da agricultura e pecuária está na lista das piores formas de trabalho infantil. São expressamente proibidas, portanto, para pessoas com menos de 18 anos. Ainda assim, 580.052 crianças e adolescentes de até 13 anos trabalhavam na agropecuária em 2017, no Brasil, segundo o Censo Agropecuário de 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As atividades mais comuns são o trabalho doméstico, a agricultura, a construção civil, os lixões e o tráfico de drogas.

A prostituição infantil é considerada trabalho infantil, na sua forma mais degradante, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, uma rede de organizações não governamentais, estimava em 2015, que existiam 500 mil crianças e adolescentes na indústria do sexo no Brasil.

O Ministério Público do Trabalho vem alertando para o avanço do trabalho infantil nestes tempos de pandemia da covid-19.

Segundo Ana Maria Villa Real, coordenadora nacional do Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente pelo MPT, a pobreza é a causa e a consequência do trabalho infantil. Logo, com os efeitos socioeconômicos da covid-19, como altos índices de desemprego e retração da economia como um todo, o cenário é desolador e merece atenção das famílias e sobretudo das esferas governamentais.

Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), frisa que ao lado da desigualdade social estrutural do Brasil, nos últimos anos houve um fragilização das ações focadas na prevenção e erradicação do trabalho infantil, a exemplo do desmonte dos espaços que discutem estratégias coletivas para enfrentar o problema, entre elas, o fim da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), extinta em abril de 2019 por decreto do Presidente Jair Bolsonaro. Com participação da sociedade civil, o órgão tinha como uma de suas principais atribuições o acompanhamento da execução do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, por ela elaborado em 2003.

Não podemos perder de vista que há em vigor uma legislação que dá as garantias legais. É dever da sociedade exigir o cumprimento da lei. Dever da justiça é fazer cumprir.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: redebrasilatual.com.br