Lembranças e ‘mentiras’ matutas
Fernando Silva*
Em 19.09.2020
Apesar de globalizado e morar entre Recife/Olinda/Recife desde 1978, sempre me lembro que sou matuto. Entre as várias definições, matuto é a pessoa que mora no campo. É o caipira, roceiro. Então, eu estava matutando e lembrando lá do interior, área rural de Agrestina, que na minha compreensão geopolítica, é a capital do Agreste. Isso mesmo! Tem gente que vai reagir dizendo que é Caruaru. Grande engano. Uma bobagem. Puro desconhecimento da geo e da política.
A explicação é óbvia. Se a capital do Brasil é Brasília, a capital do Estado de São Paulo é a cidade do mesmo nome e do Rio de Janeiro é o Rio de Janeiro e se a capital do México é a Cidade do México, logo, a capital do Agreste é, simplesmente, Agrestina. E Caruaru, como fica? Muita calma. É a Capital Forró. No máximo, um bairro populoso da capital agrestinense. Seguindo o raciocínio, a capital do Sertão é Sertânia e Nazaré da Mata é a capital da Zona da Mata pernambucana. Pronto. Revolvido. Explicado.
Toda vez que conto a minha compreensão sobre a capital do Agreste pernambucano, me lembro do Ariano Suassuna, que se identificava como ‘mentiroso’. Estou com o Mestre Ariano, que gostava da prática da mentira que não prejudicasse as outras pessoas e de ser ‘mentiroso’ por amor à arte. Estou de total acordo. Então, vamos falar, ou melhor, escrever sério sobre lembranças e ‘mentiras’.
Deixei a minha capital do Agreste (15/03/1978) em cima de um caminhão com mudança para morar em Recife, junto à mamãe (Ivanilde), a irmã (Ivoneide) e dois irmãos (Manoel e Erivam – falecido). Papai, José, conhecido como Valdevino (ou melhor, na linguagem matuto, Vadevino) ficou morando no mato. Eu sempre ia visitá-lo. Depois ele vendeu a pequena propriedade e passou a morar em Agrestina até falecer (1999).
De lá tenho boas lembranças, como andar a cavalo, jumento; tomar banho de rio, tomar leite no curral direto do peito da vaca; brincar com boi de barro (viva Mestre Vitalino), jogar bola e apostar corrida com meus irmãos em cima de cavalos de pau. Era um menino perverso, maldoso. Um dia apostei corrida de cavalo de pau com meu irmão Manoel, mais velho, em direção a uma cerca de arame farpado. Eu sabia que a cerca estava fechada e deixei ele ganhar. Uma loucura. Ele se chocou contra a cerca e levou um corte bem acima dos olhos. Graças a Deus, nada grave. Outra maldade: íamos, eu e Erivam para a capital e provoquei tanto uma jumenta que ela mordeu o braço do meu irmão mais novo.
Como de costume, o trabalho era iniciado muito cedo na agricultora e na pecuária.
Ao contrário do Presidente Bolsonaro e de muitas outras pessoas, nem por isso sou favorável ao trabalho infantil. Pelo contrário. Defendo o amplo respeito à Constituição que proíbe o trabalho até 14 anos de idade e o aprendizado vai desta idade até os 16 anos. Aliás, graças a compreensão da minha mãe e do meu pai é que houve a decisão familiar para morar em Recife e ter melhores oportunidades de estudos.
E da escola, quais as lembranças? Primeiro, numa pequena escola rural que reunia toda meninada numa pequena sala e uma única professora para todos assuntos. Nem me lembro direito dos conteúdos. Uma professora passou 15 dias sem dar aula. Dei um chute no meio da sua canela. Passei pela palmatória e fiquei ajoelhado em cima de caroço de milho e cheirando a parede, úmida e de barro. Pedagogia da pancada, nada libertadora e emancipatória. Depois, numa escola na capital do Agreste. Estudava pouco, brincava bastante e brigava muito mais. Comportamento nada recomendável. Falava palavrões com extrema abundância e diversidade. Garoto difícil, poucos aprendizados.
Tempos difíceis por lá no interior de Agrestina. Secas sucessivas. A agricultora e a pecuária nem sempre garantiam o alimento de cada dia. Estudar era, no máximo, até o científico. Sim, chamava-se assim o atual Ensino Médio. Existia ainda um tal de exame de admissão entre fases do ensino. Não cheguei a fazer, mas minha irmã, sim. Cursar uma universidade era quase fora de propósito, muito diferente da atualidade, que tem várias instituições de ensino superior no agreste e nas demais regiões interioranas do Estado. A expansão do ensino superior é fruto de opção política dos governos petistas, que precisam, além de mantidas, ser ampliadas.
Quando morei recentemente em Caruaru (2017-2018) reencontrei a Dona Aleir Ribeiro, diretora da Escola Professor José Constantino lá de Agrestina, que determinou que eu passasse um mês em casa. Por bom comportamento é que não foi. Aliás, para encurtar as lembranças, só passei a ter uma postura mais adequada em sala de aula nos dois últimos anos de universidade. Me lembro de uma professora no Primeiro Grau (atual Ensino Fundamental) que disse no início do ano letivo de 1979: “Não dou aula com esse menino na sala”. Na minha época tinha turma A, B e acho que C. Então, a diretora fez a minha transferência e a professora Francisca seguiu em paz. A professora de Teologia, já na universidade repetia: “Fernando, aula ser aula, pitomba ser pitomba”, com sotaque alemão. Imaginem a cena.
Em Recife, fomos morar na rua do Pombal, em Santo Amaro. Estudar à noite na Escola Manoel Borba na Praça Chora Menino e buscar trabalho durante o dia. Tive sorte e meu primeiro trabalho foi na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Regional Nordeste II (CNBB), liderada por Dom Helder Câmara. Brinco que comecei bem. Ter um “patrão” que foi um dos principais expoentes da Teologia da Libertação – não ganhou prêmio Nobel da Paz por ação dos militares. Lá convivi com três mulheres fundamentais para minha formação humana e política. Vanise Araújo, minha segunda mãe; Ana Bosch, uma Uruguaia; e Ceça da Mangueira (meu primeiro voto para a Câmara Municipal do Recife foi dela) que também contribuíram nos aprendizados profissionais e para iniciar a minha trajetória no campo dos direitos humanos e da democracia, para além da liberdade de expressão e dos direitos políticos – essenciais, porém não suficientes.
As lembranças da CNBB são fortes. Prisão e ameaças às lideranças religiosas e políticas. Tempos difíceis, a Ditatura Civil-Militar (1964 – 1985). Eu não entendia muito (ou nada) do que acontecia. A minha vida no interior não foi marcada pelo então regime ditatorial vigente. Na escola, não se falava do que acontecia. Porém, me lembro que Edival Nunes da Silva (Cajá) foi preso (1978) e da expulsão do padre italiano Vitor Miracapillo, de Ribeirão/PE, que se negou a celebrar uma missão pela independência do Brasil. Trabalhar por quase uma década na CNBB permitiu adquirir gosto pela leitura e abriu caminhos para cursar licenciatura em História pela Unicap. Mas, também tem mentiras. Eu precisava ir à rodoviária, lá no Cais de Santa Rita, à Sudene ou ao Seminário de Olinda e não sabia onde ficavam. Entrava em cena o mentiroso. Dizia que sabia. Corria para falar com Paulo Gonçalves e ele explicava como chegar em todos os lugares onde necessitava fazer algo.
Lá pela CNBB também fica a lembrança do trabalho que desenvolvi junto a Pastoral das Domésticas, liderada pelo padre Maurício Parant. A atuação era de educação sobre os direitos das trabalhadoras domésticas, lá na Igreja do Espinheiro, bairro de gente rica da cidade do Recife. Em um domingo resolvemos fazer um dia de debate sobre os direitos e almoçarmos no salão paroquial. Comidas maravilhosas, todas preparadas pelas mulheres domésticas, todas negras. Na hora do almoço, uma senhora com 51 anos pediu a palavra e disse: – É o primeiro domingo que não trabalho na casa da minha patroa desde os 11 anos de idade, quando fui trazida de um engenho.
Escravidão em pleno século 20.
Uma lembrança marcante foi a proibição, por ordem do arcebispo Dom José Cardozo, do meu acesso às dependências da CNBB e da Arquidiocese de Olinda e Recife, que ficavam no mesmo espaço que hoje funciona o Centro (Shopping) Comercial Boa Vista. A entrada era pela Rua do Giriquiti. O motivo: eu era ligado à Teologia da Libertação e a orientação geral da Igreja Católica, desde o Vaticano, era acabar com todo o trabalho de uma opção de evangelização e política que lutou, inclusive, contra ao regime político de 1964. Uma decepção.
Em 1978 aconteceu algo muito marcante e curioso. O Santa Cruz jogaria contra o Atlético Mineiro no mundão do Arruda. Eu e meu irmão mais novo resolvemos ir, escondidos, para o jogo, e decidamos ir andando. Éramos acostumados a andar. Coisa de matuto. Nos perdemos várias veze, na ida e na volta para casa. Quando chegamos em casa, duas broncas, uma de mamãe e a outra da irmã, que disse: – Por que vocês não me perguntaram? Eu ensinava como chegar! Oxente, e se fôssemos proibidos? Aí não teríamos assistido o Santa Cruz ganhar de 3 a 0. Timaço, aquele de 78.
Depois da CNBB tive a oportunidade de atuar por quase duas décadas no Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), criado em 1972 para ser um espaço de resistência política, artística e cultural. O Centro abriu os caminhos para o Nordeste e depois para todo o país. Seja como assessor do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) ou como conselheiro, vice e depois presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Foi a partir do CCLF que passei a ter um olhar para os povos indígenas, quilombolas, a segurança pública, educação, comunicação, democratização da gestão pública, o orçamento público, etc. e tal. Brinco, o CCLF, à época, trabalhava mais temas do que a ONU.
Das andanças me lembro de um fato ocorrido em Caxias do Sul (RS), quando lá estive para ministrar uma formação relacionada a pesquisa sobre homicídios noticiados em jornais. Cheguei numa madrugada fria e o alojamento era um espaço da Igreja Católica. Pela manhã, no refeitório, um senhor se aproximou, deu bom dia e perguntou se podia sentar ao meu lado para tomar café. Aceitei e no meio da conversa, entre um pão com manteiga, queijo, banana e café, ele indagou: – Você é negro? Parei, pensei e perguntei: – Por quê? Ele respondeu: – Pelo seu nariz. Seu nariz é largo, coisa de negro, respondeu ele. A surpresa foi tão grande que soltei um então tá. Também me lembro de uma reunião do MDNH, aqui, em Apipucos, Recife, com pessoas do Movimento Negro Unificado (MNU). Numa roda de diálogo, a conclusão foi: eu não sou negro. Uma pessoa do movimento disse que eu não tenho cabelo e boca que caracterizam um negro. A mesma observação foi feita para outras pessoas. O debate ficou confuso e não avançamos na conversação. Uma pena.
Me lembro que em algum estado brasileiro – já estive em todos, no mínimo quatro vezes – quase sempre profissionalmente, alguém perguntou como era ser presidente do Conanda. Disse que eu era nordestino e nunca houve presidente das regiões norte e nordeste no Conanda. Eu disse, sem dificuldades, que a minha felicidade era ter composto um grupo de pessoas (1999-2006) em que as diferenças de temperamentos, conhecimentos, experiências profissionais e políticas eram colocadas na direção de um projeto de atuação do Conselho Nacional, acima das vaidades pessoais e institucionais. Até hoje, a maior e melhor escola de formação política que tive.
Continuando com as lembranças, descobri o meu Paulo Freire dentro de casa. O meu filho Bruno, 30 anos, disse aos cinco ou seis, que eu não era uma pessoa sensível. Perguntei, por qual motivo e ele respondeu que eu não era sensível para comprar roupa. Era a roupa nova para as festas de fim de ano. Depois, em outra oportunidade, falei com ele, que disse: – Pai, basta falar. Não precisa gritar. Pronto, ele é o meu Paulo Freire. E numa época marcada por redes sociais, com seguidores (pense num negócio, num troço messiânico) minha referência de comportamento almejado é João Fernando, meu segundo filho, 18 anos. Sua relação com o celular é quase de desprezo. Quando quero falar com ele, preciso telefonar, via de regra, umas três vezes. Responder mensagem no celular, normalmente, ele demora até cinco dias. Às vezes, se estou com pressa, telefono no bom e velho telefone fixo. Também não atende. Viva meu Paulo Freire e meu guia não virtual, cibernético!
Também já ia esquecendo da influência de Agrestina na arquitetura londrina. Calma, não precisa ficar nervoso, avexado. Vou logo explicando. Fiz uma viagem internacional para conhecer experiências de atuação com adolescentes e jovens na Inglaterra. Um dia, caminhando de volta para o hotel, parei na rua e as pessoas que estavam comigo perguntaram se havia algum problema, se eu está passando bem. Pedi calma e expliquei que estava impressionado com a influência de Agrestina na arquitetura da capital Inglesa. Viva a Capital do Agreste! Viva Agrestina!
Para as pessoas desavisadas, Agrestina, tem no mapa, é considerada a Capital Brasileira do Chocalho, Cidade das Andorinhas e fabricante de Alfenim, “uma das gulodices orientais, muito popular em Portugal entre os séculos 15 e 16”[2] e tem forma de esculturas. Uma delícia. Pena que sou diabético. É da capital agrestinense que temos o grupo cultural Mazurca, de dança tradicional, um encontro entre pessoas negras, brancas e indígenas, formado por pessoas do campo “que giram em um círculo, na mesma direção, e cantando loas (músicas), que geralmente falam do seu cotidiano; essas rimas são respondidas por todos, formando um grande coro.” [3]
É das trajetórias (lembranças e mentiras), das vivências de filho, aluno, pai, percursos profissionais e de militância política que continuo sonhando, lutando, estudando para ser um pouco mais humano, numa sociedade que insiste na barbárie. Será que voltamos a ela ou nunca saímos de lá?
*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades. Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. Recife, PE. Setembro de 2020. jfnando.silva@gmail.com
[2] https://www.agrestina.pe.gov.br/noticias/06/02/2018/a-historia-e-conservacao-do-alfenim
[3] http://historiasecenariosnordestinos.blogspot.com/2013/06/mazurca-de-agrestina.html
Maravilha de texto, camarada! Abração, Fernando!!
Bom dia, Ciro
Muito obrigado. Só aumenta o desejo e à vontade “Que tal seguir em frente e ser feliz” como diz Leci Brandão.
Uma tarde de sábado tive a felicidade de receber este conteúdo, o que dizer? Foi o pôr-do-sol do agreste em narrativa. Gratidão!! Sim, você me levou a caminhar, com suas palavras, para o agreste de uma forma ímpar. E lembrar que já muitos sertões foram enfrentados dá força e otimismo pra enfrentar esse sertão político, doentio e devastador que vivemos hoje. Tenho muita felicidade de ser sua colega de turma do mestrado! Você sem dúvida já está me ensinando bastante! E conte comigo, companheiro Fernando!
Bom dia, Daniella,
Os aprendizados da vida e na vida são importantes para os novos conhecimento no Mestrado. Como diz um amigo, João Cândido: Na vida temo duas chances: ou dar certo ou dar muito certo. Apreendendo com os aprendizados.
Parabens, meu querida e estimado sobrinho, pelo sangue materno. Do seu tio Fernando Leite que nasceu na Capital do Agreste. Agrestina/PE./BRA..
Fernando, me chamo Anayran e mora na Capital do Agreste: Agrestina. (Curiosamente, utilizo os mesmos argumentos que você para defender nossa tese rsrs). Parabéns pelo texto! Eu também tenho pesquisado sobre os Chocalhos Alentejanos e Alfenins das Ilhas dos Açores… e assim como você sinto orgulho da nossa cultura, do nosso povo e da nossa terra. Forte abraço!
Bom dia Anayran,
Muito bom saber que estamos irmanados na defesa da Capital do Agreste.
Tio, você é parte das lembranças e vivências das nossas infâncias.
Tio, você é parte das lembranças e vivências das nossas infâncias.
Artigo sensacional!
Sério nas informações, engraçado na abordagem das lembranças; fez-me rir às vezes. Os fatos rememorados me levaram à reflexão do que a gente pode fazer ou não com a vida da gente.
Uma linda, interessante e sofrida história.
Parabéns, Fernando!
Sônia, muito obrigado por ter possibilitado o reencontra com Dona Aleir.
Fernando, gostei muito de ler suas memórias. Você fez uma excelente narrativa trazendo aspectos da sua infância, das brincadeiras, da escola , do fazer humano! Fiquei muito tocada com seu relato! Obrigada por compartilhar conosco sua história que também é nossa história! Parabéns por nos possibilitar passear com vc por Agrestina, Caruaru , por Recife em várias temporalidades!!!
Bom dia, Vera
Sue comentário é animador e um incentivo a novas produções
Querido Fernando, que lindeza de crônica.. Me senti tão contemplada com a poesia Agrestina.. Viva Dom Helder, Paulo Freire e Ariano.. Resistiremos…Abraços…
Bom dia Aparecida,
Viva a vida, com andanças, lembranças e insistências.
As memórias de Fernando me leva as memórias de minha infância.
Parabéns pela narrativa leve e engraçada.