SALA DE CINEMA – Reflexões sobre o que define a qualidade de um filme
Pedro H. Azevedo*
Em 20.09.2020
Quando assistimos a um filme o que nos faz achá-lo bom? O que define a qualidade de um filme? Melhor ainda: existe filme bom e filme ruim? Penso que essas questões são importantes para entendermos melhor a nossa relação com a arte cinematográfica em todos os seus aspectos.
Antes de tudo, um filme ser bom ou não vai partir sempre da experiência pessoal de cada um. Logo, sempre que atribuímos algum valor a um filme partimos de nossa subjetividade para encontrarmos atributos objetivos que expliquem o impacto que determinada obra provocou em nós. É nessa construção objetiva que vamos definir o que realmente é importante em um filme e o que faz um filme ser o que ele é.
Acredito que para um bom número de pessoas o julgamento por trás da qualidade de um filme esteja ligado essencialmente a história contada. O filme é bom porque ele conta uma boa história ou ruim porque ele conta uma história fraca e desinteressante. Ou então o filme é bom porque envolve grandes acontecimentos e ruim porque tudo que acontece nele é trivial e mundano. Alguns outros, mais do que relacionar a qualidade de um filme com sua história, vão dizer que a qualidade dos filmes tem a ver basicamente com a mensagem que é passada através da sua história, do valor moral por trás da jornada dos personagens, dos temas que o filme levanta para a sociedade, da ideologia que o filme segue. Vão dizer que a lição que podemos tirar da obra é o ponto principal.
Temos ainda um outro grupo, o que qualifica um filme olhando para suas qualidades técnicas. Para eles, o virtuosismo do filme é o que vai dizer se ele é bom ou não. O filme é bom por possuir um trabalho de câmera complexo, efeitos especiais elaborados, um alto valor de produção, uma fotografia bonita e exuberante e outros fatores que expõem o quão trabalhoso foi sua realização.
Até enxergo uma lógica nesses raciocínios, mas quando penso mais a fundo vejo pontos que não batem muito bem com a realidade da arte cinematográfica. Vamos por partes.
Dizer que a história é o que vai definir se um filme é bom ou não é o mesmo que dizer que o roteiro é o elemento fundamental de um filme. Ora, se isso for realmente verdade, o trabalho do diretor não tão importante assim, já que com uma boa história em mãos e algum dinheiro qualquer um poderia filmar aquele roteiro e pronto, coisa que não acontece de verdade na prática.
Um bom exercício para perceber como um filme é muito mais que o roteiro é assistir aos filmes escritos pelo norte americano Charlie Kaufman (seus roteiros são extremamente idiossincráticos) dirigidos por Spike Jonze (Quero Ser John Malkovich), Michel Gondry (Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças) e pelo próprio Kaufman (Sinédoque, Nova York) e notar como os filmes, apesar de possuírem uma semelhança óbvia, diferem bastante entre si dependendo do diretor. Ao colocar o roteiro como protagonista, o valor visual do cinema é totalmente desprezado e ele passa a ser visto como uma arte subordinada à literatura.
Entendo um pouco mais os que colocam o valor moral ou ideológico como fator principal do filme, principalmente quando olhamos para filmes que seguem ideologias e pensamentos execráveis como o nazismo, fascismo e obras racistas, machistas e homofóbicas. Inclusive, é necessário apontar o dedo para filmes que possuem esse tipo de conteúdo e mostrar o quão podres eles são. Mas para além disso, vejo esse modo de pensar como um limitador do próprio cinema. É fato que qualquer obra vai possuir uma moral por trás dela, logo, se formos por essa lógica, a maneira de julgar a qualidade de um filme seria apenas identificar a mensagem que ele quer passar, se ela for boa ou concordante com as minhas ideias o filme será bom e o contrário também segue. Isso quer dizer que um espectador de esquerda seria incapaz de apreciar as obras de cineastas assumidamente de direita como Clint Eastwood e Mel Gibson e um espectador de direita não poderia gostar dos filmes soviéticos de Serguei Eisenstein e Dziga Vertov. Meio radical, mas seguindo essa lógica chegamos em algo assim.
Já para os que dizem que a qualidade de um filme está relacionada com o seu valor de produção ou beleza estética dou um contraexemplo: comparar o A Bruxa de Blair, de 1999, gravado de forma amadora e custando “apenas” 60 mil dólares, com o último filme da saga Star Wars, A Ascensão Skywalker, que custou 275 milhões de dólares (mais de 4.500 vezes o custo do A Bruxa de Blair) e é tecnicamente impecável, e ver qual dos dois é mais impactante, e digo tanto para a história do cinema quanto como experiência cinematográfica isolada.
O fato é que todos esses fatores até são relevantes ao pensar na qualidade de um filme, mas todos eles são subordinados a um elemento superior que vai reger e significar tudo o que diz respeito ao filme: a mise en scène.
O termo francês que nasceu no teatro e foi apropriado pelo cinema significa basicamente o princípio regedor da encenação pensado pelo diretor e concretizado em absolutamente todos os aspectos do filme. A mise en scène não é a história em si, não é a mensagem que o filme quer passar, não é a técnica utilizada ao fazer o filme, ela é a forma como tudo isso é feito em unidade, a regra específica que a linguagem cinematográfica vai seguir para transformar o ponto de vista do diretor em algo material. Mais importante do que a história em si ou a mensagem passada por essa história, é a forma como essa história é contada. É na forma que reside a alma do cinema.
Sobre a mise en scène o crítico francês Michel Mourlet, no artigo de 1959 Sobre uma arte ignorada, diz: “É sobre ela que repousa nossa atenção, ela que organiza um universo, que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra. Como a correnteza das notas de uma peça musical. Como o escoamento das palavras de um poema. Como os acordos ou dissonâncias de cores de um quadro. A partir de um assunto, de uma história, de “temas”, e mesmo do último tratamento do roteiro, como a partir de um pretexto ou de um trampolim, eis o jorramento de um mundo do qual o mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o esforço que o fez nascer.”
É a mise en scène que vai dizer o que tem valor ou não em uma história. Um exemplo que me veio a mente e que acredito que esclareça bem o poder da mise en scène está no filme sobre a Guerra do Golfo, Soldado Anônimo, dirigido por Sam Mendes. O texto do filme é claramente uma crítica à política de guerra norte-americana, satirizando a cultura militar do país, porém as escolhas estilísticas que Mendes toma não condenam a guerra, mas a glorificam. A fotografia é bonita e épica, a escolha dos planos engrandece as situações, a ação é filmada com emoção em vez de qualquer outro sentimento que possa condenar ou denunciar os fatos; é a mise en scène ressignificando a história contada e contradizendo a mensagem passada pelo texto. Um erro de mise en scène.
Ou seja, o que vai fazer um filme ser bom ou não é o impacto causado em nós pela mise en scène determinada pelo diretor. A história do filme só vai nos cativar por conta das escolhas de encenação (o estilo de atuação, os enquadramentos escolhidos, o ritmo da montagem, a trilha sonora, basicamente todos os elementos do filme). A mensagem do filme vai ser gerada pela forma que ela é abordada em tela, os aspectos técnicos vão ser definidos pela função dramática que eles podem desempenhar, tudo isso é mise en scène. No fim de tudo, se fomos impactados de alguma forma foi porque a mise en scène, pelo menos para nós, foi bem realizada.
*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.