Quem governa o governante?

Por

Mirtes Cordeiro*

05.10.2020

Essa preocupação está na mente do povo brasileiro em vários cantos do país desde a reunião ministerial do dia 22 de abril que, através das imagens divulgadas pelo decano do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, possibilitou que o país assistisse ao ‘espetáculo’ decadente promovido pela governança do país, na qual, entre muitas aberrações, o ministro do Meio Ambiente defendeu “passar a boiada e mudar regras enquanto a atenção da mídia está voltada para a Covid-19.”

Segundo o ministro, seria hora de fazer uma “baciada” de mudanças nas regras ligadas à proteção ambiental e à área de agricultura e evitar críticas e processos na Justiça. “Tem uma lista enorme, em todos os ministérios que têm papel regulatório aqui, para simplificar. Não precisamos de Congresso”, disse o ministro do Meio Ambiente.

No dia 29 de setembro, 4 meses após a dita cuja, a boiada acabou de passar, acelerada, rompendo com seus grandes chifres todos os cercados que protegiam o que restava das áreas ambientais necessárias à garantia da qualidade de vida dos brasileiros e,  de uma só canetada, acabou com as regras que protegiam manguezais, extinguiu critérios para licenciamento de irrigação e autorizou a queima de resíduos e agrotóxicos. Assim sendo, ficaram sem proteção  as fontes de água, o que resta das matas que circundam grandes cidades, as restingas, os manguezais.

bbc.com

Já não bastavam o impedimento à delimitação das terras indígenas, o não combate à grilagem, e a anistia aos desmatadores.

Sem precisar do Congresso Nacional, justamente a instância com maior responsabilidade para controlar quem governa, o executivo, como requer a regra democrática. O Congresso define o orçamento e controla, o STF regula os atos e a Presidência da República executa.

A cada dia somos impactados por propostas que têm objetivos bem delineados e funestos de desmontar o que fomos capazes de construir do edifício democrático.

O presidente, diariamente, desmente o que disse no dia anterior e neste momento de pandemia tem uma compreensão aparentemente otimista sobre o novo coronavírus, contrariamente a todo conhecimento científico até então esboçado. Cada ministério com suas invenções. O ministro da educação xinga os professores; a ministra da família define que nesta república meninas vestem rosa e meninos vestem azul. Por sua vez, o ministro do Meio Ambiente entende que a legislação até então criada para proteger os recursos naturais é “um emaranhado de regras que atrapalha os investimentos, ameaça a empregabilidade e torna o Brasil menos sustentável”, enquanto o ministro da economia navega incansável num mar de criatividade econômica para fazer a economia crescer, sem sucesso.

Desde a Lei da Anistia – assinada em 28 de agosto de 1979 pelo então presidente general João Baptista Figueiredo -, grandes avanços marcaram este período, embora atravessando grandes crises econômicas. No entanto, as maiores ameaças vêm da desigualdade social e da polarização crescente na política.

Este período, de 40 anos para cá, foi de muita importância para os brasileiros que militaram contra a ditadura militar, pela anistia dos presos políticos e todos que foram perseguidos e exilados do seu país que, durante este tempo puderam vivenciar a esperança de construir um país democrático com o foco na estruturação de políticas públicas para garantia dos Direitos Humanos.

Atualmente, vivemos  a negação da luta, da ciência, dos princípios democráticos, da fraternidade, igualdade e humanidade.

São desse tempo, de 40 anos, a Constituição de 1988, denominada por Ulisses Guimarães como Constituição Cidadã, que definiu as bases para um país que deseja garantir direitos básicos para o seu povo. Entre elas, a reforma da saúde que resultou na construção do Sistema Único de Saúde (SUS); a política de proteção integral às crianças e adolescentes; a garantia da universalidade e gratuidade da educação básica; a política de gênero com a proteção dos direitos das mulheres; as políticas afirmativas contra o racismo e todo tipo de homofobia; a garantia da manutenção dos povos indígenas em seus territórios; a política de proteção ambiental; a participação da população através de colegiados nas instâncias de governo; a garantia dos direitos individuais … e tantas outras nascidas do desejo de se construir um país melhor.

Em seu livro intitulado A Era dos Direitos, diz  Norberto Bobbio que “a história dos direitos do homem, é melhor não se iludir, é a dos tempos longos. Afinal, sempre aconteceu que, enquanto os profetas das desventuras anunciam a desgraça que está prestes a acontecer e convidam à vigilância, os profetas dos tempos felizes olham para longe”.

Parece que aqui no Brasil o tempo de olhar para longe ainda não foi suficiente. Sem dúvida, muitos resultados foram sentidos e colhidos durante a percurso, mas parece que nos perdemos no meio das veredas caminhadas.

Anos sombrios têm circundado a vida dos brasileiros, movidos por nossos tropeços internos e pelos estímulos gerados pelo conhecimento no mundo moderno e contemporâneo, como os avanços da ciência, das comunicações, da tecnologia. No entanto, devemos ter a preocupação maior com o avanço das forças reacionárias e fascistas que crescem em alguns países com os quais o atual presidente da república se alia e de suas ideias se alimenta.

Todos nós sabemos que a transição de um período autoritário para um processo democrático é difícil, mas a impressão que tínhamos é que bastava dispor de vontade política, para construir o ambiente institucional por onde transitam as políticas públicas voltadas às necessidades da população. No entanto, isso requer conhecimento e habilidade. Não a “habilidade política“ que profana a ação pública, mas a compreensão necessária e científica que requer a condução dessas políticas.

Considerando o que ele chama de estratégia de engenharia institucional, Álvaro Moisés, sociólogo e escritor, em seu texto sobre Dilemas da Consolidação da Democracia no Brasil, diz que “a estratégia de construção da democracia não é uma decorrência natural do fim do autoritarismo. Quaisquer que sejam elas, as sociedades que saíram da ditadura e querem ser democráticas têm de se transformar em algum ou em vários sentidos para chegarem a ser democracias modernas. E isso não se constitui, propriamente, em uma tarefa simples, por duas razões: seja por causa do peso que a experiência autoritária ainda exerce sobre essas sociedades; seja por causa das dificuldades que as forças políticas relevantes comprometidas com o projeto democrático enfrentam para dar conta das suas tarefas estratégicas, o terreno é essencialmente movediço”.

Entendo que estamos no momento político pantanoso em que essa reflexão deva ser feita com profundidade, já que estamos atualmente vivendo acuados por propostas e ameaças que surgem diariamente contra os direitos básicos da cidadania, movidas por um governo que embora eleito, se manifesta como aprendiz de fascista.

Novamente recorro a sabedoria de  Bobbio. “É verdade que apostar é uma coisa e vencer é outra. Mas também é verdade que quem aposta o faz porque tem confiança na vitória. É claro, não basta confiança para vencer. Mas se não se tem a menor confiança, a partida está perdida antes de começar. Depois, se me perguntassem o que é necessário para se ter confiança, eu voltaria às palavras de Kant citadas no início: conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muito boa vontade”.

Conceitos justos permanecem sob a guarda da Constituição. É preciso retomar a experiência e conectar as boas vontades.

Quarenta anos é um tempo pequeno para consolidar o estado democrático moderno. É preciso sempre recomeçar a caminhada abrindo novos caminhos. É preciso que sejamos poetas dos tempos felizes combatendo os poetas das desventuras, conforme Bobbio.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.