A alteridade como princípio da dignidade humana

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 04.11.2020

A afirmação da dignidade humana está diretamente relacionada ao reconhecimento do outro na sua condição de pessoa e de ser humano. Isso porque o sentido de ser digno está vinculado ao reconhecimento da alteridade da pessoa. Quando o outro é reconhecido apenas pelas suas semelhanças e por aquilo que o iguala ao conjunto identitário que marca uma cultura dominante ou mesmo por sua identidade coletiva e se não se adequa a esses requisitos passa a ser excluído e é visto como um inferior. Isso implica na eliminação da alteridade e se constitui num processo de violação e quebra da humanidade do outro. Inferiorizar pela diferença é negar a alteridade do outro e destituí-lo de sua dignidade.

A grande riqueza da alteridade é a indispensável presença do outro. Não existe alteridade individual, ela é essencialmente uma interação e essa interação é promotora da subjetividade humana e, por sua vez, toda subjetividade constitui uma intersubjetividade. Isso nos diz que o ser humano isolado não se humaniza, não se torna pessoa. Precisamos da presença do outro para nos construirmos humanos. É pela presença do outro que nos fazemos e esse fazer-se é permanente. O outro será sempre a possibilidade criadora que temos de nos ampliarmos, de expandirmos nossos horizontes e de enriquecermos a nossa existência com as contribuições que ofertamos e que recebemos. A nossa prática humana só é possível na interação social, na intersubjetividade. Nós somos pelo modo como nos relacionamos e convivemos com os outros. É isso o que nos torna humanos.

A lógica neoliberal vê o outro como um impedimento para o crescimento e obtenção do sucesso para a pessoa, pois o outro será sempre o oponente,

A perspectiva neoliberal, expressa na sociedade de desempenho, fortemente marcada pelos ditames do consumo e pelo isolamento narcísico que elimina a presença do outro estimula um modo de existência marcado pela competição e pelo individualismo, de tal forma que as convivências humanas passam a ter um caráter de animosidade e indiferença pelo outro. É nesse contexto que o ser humano é destituído da sua alteridade e passa a ter a sua dignidade humana comprometida. A lógica neoliberal vê o outro como um impedimento para o crescimento e obtenção do sucesso para a pessoa, pois o outro será sempre o oponente, o adversário. Aliás, não é por acaso que o dito popular “o meu direito termina onde começa o seu” passou a vigorar como uma verdade facilmente assimilada pelo povo. Compreender dessa forma é não perceber que nenhum direito pode acabar em função de outro. É pela afirmação do direito do outro que preservamos o nosso direito.

Somente pela preservação de convivências éticas, amorosas e interculturais com os outros é que constituímos nossa alteridade. Superar as formas de isolamentos, de preconceitos e de egocentrismos é o caminho mais valoroso para recuperarmos a nossa humanidade num contexto marcado por etnocentrismos, estereótipos e violências contra a dignidade humana. Como afirma Bartolomé Ruiz (2006, p. 217), “As práticas de liberdade do outro me ajudam a crescer na minha autonomia. Se não houvesse relação com a alteridade, o sujeito ficaria confinado nos seus pobres limites. As práticas criativas dos outros orientam ao sujeito para novos horizontes do ser”, do livro As encruzilhadas do Humanismo, Vozes.

É na convivência com a outra pessoa que nos reinventamos e ampliamos as nossas possibilidades de liberdade.

A desconstrução da pessoa está diretamente vinculada à perda da alteridade. Isso porque a alteridade é uma forma de interlocução que se abre para a existência humana de forma criadora e humanizante, capaz de nos ofertar valores éticos orientadores de nossas convivências e práticas sociais. No entanto, a alteridade não disponibiliza um modo padronizado de ser e estar no mundo, muito menos uma prescrição de convivência, como se dependêssemos de um manual para nos entrelaçarmos na convivência com os outros. Ao contrário disso, a alteridade é a possibilidade que temos de alargarmos os horizontes da nossa humanidade a partir da outra pessoa. É na convivência com a outra pessoa que nos reinventamos e ampliamos as nossas possibilidades de liberdade.

É pelo encontro com o outro que encontramos a nossa humanidade e somente pela alteridade isso é possível. Não devemos compreender a alteridade como uma imposição que se interpõe entre os sujeitos para efetivar modos de convivências e de intersubjetividades. Ela não é uma amarra que se coloca em nossos corpos e dita o modo adequado de caminhar. Ela é sempre uma dimensão de possibilidades que se abre para concretizarmos a nossa existência de forma mais humana e feliz. Por isso, não deve ser, meramente, um modo de trocas de atitudes ou favores que se intercambiam para garantir relações e convivências sociais plausíveis, num entendimento de que a gentileza advinda da alteridade dependesse de uma ação de permuta, como se estivéssemos num mercado de escambo. Isso seria uma violência contra a humanidade do outro porque, com essa ação, enxergaríamos apenas o outro numa dimensão utilitária e coisificante. No fundo, essa atitude demarca apenas uma expressão de desrespeito à alteridade.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.