Primavera de rua

Por

Eugenio Jerônimo
Em 07.11.2020

Os sinais de trânsito do Recife já se converteram em palcos de artistas de rua. Mímicos, dançarinos, mágicos e malabaristas se arriscam contra os poucos segundos durante os quais o semáforo permanece aberto para conquistar o humor dos motoristas, merecer sua aprovação e receber o aplauso material expresso numa moeda. Por vários motivos estão ali, perfil divergente do que exige o circuito dos espetáculos convencionais, pequeno número de teatros, falta de público, armadilhas da vida. Alguns parecem tão talentosos que você se pergunta por que não conseguem espaço nos ambientes tradicionais.

No meio dessa multiplicidade de pessoas que se entregam à arte em céu aberto, nunca tinha visto músico. Hoje havia: um violinista. Os íntimos da Europa e dos Estados Unidos dizem que músico de rua lá é comum.

Abri a janela do carro para ouvir o som do delicado instrumento, que os motores e as buzinas da via transversal sujavam. O violinista executava – ia dizendo tocava porque achei solene demais executar para uma apresentação de rua, mas menos importa o lugar que o artista – “A primavera”, de Vivaldi.

Não que eu seja um ouvido capaz de distinguir no caos de máquinas que roncam e de tropel de pneus qualquer sinfonia. É que o trecho da melodia tem sido embalado de popular e servido até de trilha sonora para desenho animado mundialmente famoso.

Lembrei-me do barbeiro violinista de Dom Casmurro. Aquele que passava a alma pelo arco do violino e perdia os fregueses, mas não perdia uma só nota, enquanto Bentinho elucubrava o que aconteceria se lhe flertasse a bela esposa.

O sinal fechou. O violinista espremeu-se entre os carros. Com o chapéu colheu uma moeda, outra e mais outra, sem examinar o valor, agradecendo em curvado gesto. Correu para o semáforo da via transversal, onde o semáforo abrira. Não via nada em volta. Nem a antecipada mão de uma jovem que estendia uma moeda; nem o entusiasmo irresistível de uma criança que batia palmas. Via apenas seu próprio violino. Aliás, nem isso: tocava agora de olhos fechados. Como ao personagem de Machado de Assis, o que lhe importa é a arte.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria)