Afetos humanos e o desnudamento de si

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 12.11.2020

Nós, seres humanos, temos uma tendência a aspirar e buscar a felicidade. O desejo de ser feliz é latente em cada um de nós. Pretender estar bem e em paz não significa dizer que validemos o “imperativo da felicidade”. Nem sempre nos sentimos bem, alegres, otimistas, motivados. Assim, precisamos estar em sintonia conosco mesmo para ampliar o sentimento de felicidade e afetar positivamente as nossas relações.

O afeto é um sentimento, um caminho, uma possibilidade de nos acolher e acessar também a outra pessoa. Para o líder espiritual Dalai Lama, o “afeto humano ou da compaixão não é apenas uma questão religiosa. Trata-se de um fator indispensável na vida do dia a dia”, como afirma na obra A arte da felicidade (2000 p.59).

O líder espiritual lembra que o afeto tem a ver com a nossa saúde mental e emocional. A afetividade é um sentimento inclusivo, possibilita acolhimento e perspectiva de pertencimento, ideia de compor uma coletividade, de fazer parte da humanidade. Nessa direção, é importante refletirmos sobre alguns aspectos relacionados à construção da nossa identidade que envolve o desnudamento ou desvelamento de si. É possível nos revelarmos totalmente? Nós conseguimos nos enxergarmos verdadeiramente? Nos conhecemos a nós mesmos na totalidade? O aforismo grego atribuído a Tales de Mileto “conhece-te a ti mesmo” é real para cada um de nós? Quem nunca se deparou com situações inusitadas consigo mesmo que nos causaram estranhamentos, que não entendemos por que agimos de determinadas formas? Ou que no calor de uma emoção como a raiva, ciúme, medo reagimos de forma impulsiva, rude, hostil? E depois nos incomodamos com tal comportamento?

A possibilidade de um ser humano aceitar a si mesmo, acolher suas limitações, fragilidades, dificuldades é um ato de amor consigo.

Um comportamento afetivo nos habilita a compreendermos melhor a si mesmo, a não fazer autojulgamento e nos acolhermos. A possibilidade de um ser humano aceitar a si mesmo, acolher suas limitações, fragilidades, dificuldades é um ato de amor consigo. Apenas nos acolhendo e nos aceitando é que podemos também acolher o outro e o afeto humano é uma possibilidade real de interação e encontros.

O ser humano, antes de “ser um ser que sabe ou que deseja”, é um “ser que ama”, afirma Zygmunt Bauman (2009, p.53), citando o filosofo alemão, Scheler, em sua obra A arte da vida.

Desenvolver e praticar a arte da vida, fazer da nossa existência uma obra de arte, como ressalta Bauman (2009, p.99), significa no nosso mundo liquido – moderno viver em constante transformação, autorredefirnir-se, tornar-se uma pessoa diferente daquela que se tem sido até então. É o que o autor chama de destruição criativa. Esse reelaborar de si interage com o desnudar-se visando tornar nossas experiências de vida inteligíveis e garantir nossas singularidades considerando as escolhas necessárias.

Emmanuel Lévinas ensina que nessas escolhas é importante o ato de se lançar no compromisso de responsabilidade com o outro. Bauman (2009, p.160) ainda diz que esse ato de responsabilidade não é uma transação instrumental, não é um contrato, uma declaração, nem uma ponderação de nossos direitos e deveres, promessas e expectativas. A relação intersubjetiva não é uma relação simétrica. Sou responsável pelo outro sem esperar reciprocidade.  A reciprocidade é assunto dele. Nessa perspectiva, minha responsabilidade é intransferível, ninguém pode me substituir nesse ato de responsabilidade com o outro. É uma questão de assumir a responsabilidade pelo outro, de considerar a nossa identidade enquanto ser humano na relação intersubjetiva. Assumimos, assim, a escolha responsável pelo outro, saindo do nosso autocentramento, desnudando-se para alcançar o outro. É isso que trata a arte da vida.

Somos antes de tudo seres humanos que sentem e que afetam o mundo e esse lhe afeta também.

O desvelar e desnudar, aqui, que busca o encontro humano e a escolha pelo outro não coaduna com a sociedade da transparência ou da positividade trazida por Byung-Chul Han, na Sociedade da Transparência (2017). Não nivela e nem uniformiza o sujeito, ao contrário, reflete a ética da alteridade quando compreende e se responsabiliza pelo outro considerando as suas singularidades, diferentes formas de pensar, sentir e agir nas suas relações com o mundo. Sinto, logo existo, em contraposição ao cogito de Descartes “Penso, logo existo”.  Somos antes de tudo seres humanos que sentem e que afetam o mundo e esse lhe afeta também. Que registros ou marcas deixamos no mundo? A forma que marcamos as pessoas nos eterniza diante da vida.

Assim, nessa direção, o afeto, a afetividade pode atuar como uma redescoberta do sentido de pertencimento humano como alternativa possível à fragmentação do sujeito, à sua exclusão, em busca da dignidade que nos humaniza e nos ensina sobre a arte da vida. Precisamos reconhecer o outro com base em seus referentes e formas de entender o mundo. Como universalizou o poeta Fernando Pessoa, no célebre verso “Navegar é preciso…”, daí reconhecer a necessidade de que não vivemos isolados, ou seja, a verdade é que navegamos numa incansável interação com o outro. Com isso, voltar-se para o nosso eu e buscarmos sempre a verdadeira essência humana, demasiadamente humana, de viver a vida nos princípios da alteridade. Corrobora-se, nesse viés, Milan Kundera, ao afirmar que “o valor de um ser humano reside na capacidade de ir além de ele próprio, de sair de dentro de si próprio, de existir dentro de si próprio e para as outras pessoas.”

O afeto humano é uma forma de caminhar pela vida e libertar nossas humanidades.

O olhar silencioso muitas vezes é a exclusão do outro, sobretudo, quando lhes negamos compreensão, empatia e afetividade. Qual o nosso lugar no contexto humano? Como construímos as nossas relações? Como podemos aprender a arte de caminhar? A arte do cuidado? O cuidado de si implica primeiramente acolher-se a si mesmo, como afirma Leonardo Boff. Implica uma nova forma de se relacionar e habitar a terra. O cuidado é o sentido relacional da vida. Heidegger considera o cuidado como uma condição existencial do estar-no-mundo. Nessa perspectiva, o cuidado vem como atenção amorosa e afetuosa para consigo mesmo, para com o outro e para com a vida, como afirma Boff. O cuidado é evocado como eixo estruturante da vida humana.

As escolhas que fazemos afetam a nossa vida e as das outras pessoas. Muitas vezes, os seres humanos precisam apenas de atenção, alguém que os escutem. A ética da alteridade passa por esse acolhimento, por essa responsabilidade diante das relações que estabelecemos com todos. Um gesto fundante de um bem-viver é abrir o coração para escutar e acolher o outro com afeto. Importar-se com as outras pessoas, ter apreço por elas, é um ato de amor. O desnudamento de si baseado na alteridade é quando somos capazes de curar a nós mesmos e também curar ao outro por meio da escuta, da amorosidade e do afeto. O afeto humano é uma forma de caminhar pela vida e libertar nossas humanidades. Finalizo com a proposição de Rumi, poeta persa do século XIII: “Por que você permanece na prisão quando a porta está completamente aberta? ”

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.