27 de novembro

Por

Jénerson Alves*

Em 27.11.2020

Conheceram-se na faculdade. Ambos cursavam Letras, mas eram tão diferentes. Ela tinha uns gostos estranhos; ele nem gosto tinha. Ninguém entendia nem como podiam ser amigos. O aspecto sisudo dele era imutável. Não conhecia bom humor. Face grave, jeito sério, olhar frio. Ela era o oposto disso. Gestos abundantes, riso fácil, olhar meigo.

Ousada, certa noite, parou-o no corredor. Olhou-o nos olhos e disse:

– “E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.”

Ele reconheceu os versos de Drummond. “Os ombros suportam o mundo”. Ele se reconhecia naqueles versos. Ninguém sabia quais eram as guerras que ele enfrentava. Nem ele esperava partilhá-las. Baixou os olhos, viu os pés da garota. Ele recitou o trecho final do poema:

– “Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”

Foi o suficiente para ela. A garota tomou-o pela mão direita. Ela usava um vestido hippie branco simples. E curto. Um colar de pedra artesanal. Cabelos soltos. Já ele, estava preso em uma roupa social. Ela o levou ao café. Não precisavam de sala de aula naquela noite. Ele olhou-a fixamente. Foi quando notou que ela não era apenas estranha, mas bonita. Estranhamente bonita. Ela só queria descobrir o segredo do rapaz misterioso. Ele disse que perdera o pai para o câncer há alguns meses. Havia deixado de rir desde então. Chamou para si a responsabilidade de dar força à mãe e aos irmãos.

Ela entendeu.

Por trás de tantas diferenças, perceberam a essência que os unia. Os dois tinham corações perdidos. E foi assim que se encontraram.

Terminado o café, ele ofereceu uma carona. Ela morava a alguns quarteirões da faculdade, mas aceitou. Pediu para que parasse o carro a poucos metros de casa. Não queria ouvir perguntas do pai sobre com quem viera. Meio sem se dar conta, ela desabafou:

– Tenho câncer. A gente descobriu na semana passada. Meu pai pensa somente que a morte está perto para mim. Eu penso no quanto ainda posso viver hoje. Acho que a vida não é tanto pela quantidade, é mais pela qualidade…

Foi então que os lábios macios da garota tocaram a face pálida do rapaz. Ele segurou por um momento. Foi inevitável. Como um ímã, os lábios se atraíram. E o carro foi o cenário da primeira noite de amor. Na despedida, uma lágrima escorreu pela face dele. E ele explicou:

“- Pois sabei que é por isso que assim ando:
Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando”.

 Ela sorriu. Também conhecia aqueles versos.

– Olavo Bilac é bem a tua cara! Só vocês têm emoções metrificadas!

Ele riu.

E por um momento a vida teve sentido. E aquela era uma noite de 27 de novembro. Uma sexta-feira.

*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.

Foto destaque: Pavel Jurca/Pixabay