Ruptura: antirracismo x banalização

Por

José Antonio Correa Francisco*

Em 20.12.2020

“Não chego armado de verdades categóricas. Minha consciência não está permeada de fulgurações precípuas. No entanto, com toda a serenidade, acho que seria bom que certas coisas fossem ditas. Essas coisas, eu as direi, não as gritarei. Pois há muito o grito saiu da minha vida. E fez tão distante…” (Frantz Fanon)

À Emily Victória Silva dos Santos (In memoriam)

À Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos (In memoriam)

Em 25.5.2020, em Minneapolis, Minnesota, EUA, George Perry Floyd Jr, negro, foi fria e covardemente assassinado por um policial branco, por suspeita de ter utilizado nota falsificada na aquisição de um produto. Por 11 vezes George disse “Eu não consigo respirar”, apelo dolosamente ignorado pelo policial branco.

No dia seguinte ao assassinato de George, os jogadores da equipe do Milwaukee Bucks da NBA (liga profissional do basquetebol, nos EUA) se recusaram a entrar em quadra, boicote que foi seguido por outras equipes, jogadores, técnicos e dirigentes. O ato antirracista do mundo do basquetebol, em repúdio ao assassinato de George Floyd, repercutiu em todas as cidades dos EUA, durante semanas.

O policial branco foi solto, após pagar fiança, e responderá ao homicídio doloso em liberdade.

Em 8.12.2020, um ato racista contra o ex-jogador e membro da comissão técnica do time turco Istanbul Basaksehir, o camaronês Pierre Webo, negro, durante partida de futebol da Champions League da UEFA (liga profissional européia de futebol), provocou revolta em todos os jogadores e dirigentes da equipe turca e da equipe francesa Paris Saint Germain. A partida foi paralisada aos 13 minutos do primeiro tempo, após a iniciativa de Demba Ba, jogador negro e senegalês do time turco: os jogadores, a comissão técnica e os dirigentes de ambas as equipes se recusaram a permanecer em campo na presença do 4º árbitro, acusado de proferir a ofensa.

O ato repugnante do 4º árbitro e a resposta imediata de repúdio de ambas as equipes europeias de futebol estamparam as manchetes da mídia esportiva em todo o mundo.

O ex-técnico do Flamengo, porém, entrevistado sobre o cancelamento do jogo da Champions League disse: “está muito na moda isso de racismo”.

O mundo esportivo de grande representatividade concedeu duas respostas antirracistas contundentes. Por outro lado, atitudes de indiferença e escárnio estão constantemente presentes, parte da realidade estrutural da sociedade.

No Brasil, o mito da “democracia racial” segue sendo vocalizado[1] por autoridades, denotando a persistência ideológica e a radicalidade histórica do racismo institucional e estrutural.

As violências plúrimas sofridas pela população negra, contudo, escancaram que a “democracia racial” não passa de uma quimera da branquitude[2]: recebemos os piores salários; ocupamos prioritariamente os empregos subalternos e raramente os postos de comando ou chefia; somos a maior parte dos presos e custodiados, no sistema prisional; compomos a menor parcela nos cargos públicos; somos raríssimas personagens nos cargos de cúpula do Poder Judiciário e do Ministério Público.

É possível questionar se o mito da “democracia racial” não seria fruto das teorias eurocêntricas e eugênicas, anteriores à Proclamação da República, que desejavam o “branqueamento” da população negra brasileira, por meio do epistemicídio[3] da cultura africana, ou da legislação estatal que privilegiou a posse de terra do branco e relegou ao negro liberto a fome e o morro. Há muito mais a questionar e, convenhamos, a estrutura econômica é ainda mais racista do que as teorias “científicas” dos novecentos.

Ainda hoje, o samba-enredo antológico[4] desnuda a realidade das vidas negras:

Pergunte ao criador, quem pintou essa aquarela

Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela

A Rede de Observatórios da Segurança[5] divulgou dados em que a letalidade policial é muito maior entre os negros. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco, por exemplo, os estudos apontaram que a população negra é a que mais morre pela polícia, seja em números absolutos ou proporcionalmente. Na Bahia, 97% dos mortos em confronto com a polícia eram negros.

Por outro lado, segundo dados oficiais do CNJ (2018), o percentual de juízes negros e de juízas negras era de 18% (1,6% pretas e pretos e 16,5% pardas e pardos). Segundo o IBGE, em 2018, a população negra brasileira representava 55% do total.

Depois das surpreendentes reações antirracistas dos atletas profissionais do basquetebol e do futebol, há expectativa – e sinceramente espero que não seja (mais) uma ingênua ilusão – de que o Poder Judiciário e todo o sistema de Justiça, no Brasil, sejam contagiados por essa perspectiva.

Recentemente, no dia 11.11.2020, a 2ª Turma do TST, no julgamento do AIRR- 1000390-03.2018.5.02.0046, em abordagem objetiva sobre o tema do racismo institucional, reformou a decisão ordinária e condenou a empregadora no pagamento de indenização dos danos morais à trabalhadora negra que foi dispensada por usar cabelo estilo “black power”, o que desrespeitaria o “guia de padronização individual” imposto às empregadas mulheres. Aqui, trecho do voto da Ministra Relatora Doutora Delaíde Miranda Arantes:

“Cumpre destacar que no atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade, toda a forma de discriminação deve ser combatida, notadamente aquela mais sutil de ser detectada em sua natureza, como a discriminação institucional ou estrutural, que ao invés de ser perpetrada por indivíduos, é praticada por instituições, sejam elas privadas ou públicas, de forma intencional ou não, com o poder de afetar negativamente determinado grupo racial. É o que se extrai do caso concreto em exame, quando o guia de padronização visual adotado pela reclamada, ainda que de forma não intencional, deixa de contemplar pessoas da raça negra, tendo efeito negativo sobre os empregados de cor negra, razão pela qual a parte autora faz jus ao pagamento de indenização por danos morais.” (grifos nossos)

Alvissareira a decisão da 2ª Turma do TST, sobretudo por modificar a decisão ordinária (tanto do juiz de primeiro grau, quanto do tribunal regional), que não vislumbrara o racismo do “guia de padronização”, mesmo ausente qualquer imagem de mulheres negras como referência ou modelo “padrão”.

55% da população brasileira é negra!

55% da população brasileira é negra!

Será preciso repetir isso sempre:

55% da população brasileira é negra!!!

Por mais que presenciemos o crescimento de atos antirracistas, por mais que  aumente a representatividade da população negra em diversas atividades profissionais e lúdicas, ainda haverá longo caminho a percorrer.

“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.” (O avesso da pele, Jeferson Tenório).

A nossa sobrevivência sempre foi árdua e dificultada pelo racismo estrutural. E a luta antirracista apenas se iniciou, não há retorno.

A origem do racismo não é responsabilidade da população negra; os privilegiados e os beneficiários dessa perversidade histórica que o desarmem.

*José Antonio Correa Francisco é juiz do trabalho substituto da 11ª Região (AM/RR) e membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia).
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
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Foto destaque: Folha – Uol