SALA DE CINEMA – “Rio, 40 Graus”: o revolucionário encontro do cinema com o real

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 20.12.2020

Não há dúvidas que o Cinema Novo foi o movimento mais relevante da história do cinema nacional. Iniciado nos anos 60, o movimento foi a primeira manifestação dentro do cinema brasileiro a buscar uma relação estética original que dialogasse com a realidade do país através de um olhar sincero. Mas, alguns anos antes dos três principais cineastas do movimento — Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Paulo César Saraceni — aparecerem para o mundo, Nelson Pereira dos Santos lançou o filme que influenciou toda a geração do Cinema Novo, a semente primordial do movimento: Rio, 40 Graus.

Lançado em 1955, Rio, 40 Graus, além de inspiração para o Cinema Novo, marca a entrada do cinema moderno dentro do país. Nelson Pereira dos Santos vai buscar no neorrealismo italiano a estética que sirva para contar com perfeição a história do seu filme. O movimento italiano é, junto com filmes como Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) e A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939), considerado o ponto de passagem do cinema clássico para o moderno na história.

Foi no fim da Segunda Guerra Mundial que o neorrealismo italiano surgiu. O movimento cinematográfico revolucionou o cinema ao escolher mostrar a realidade destituída de qualquer artifício que mascarasse ou romantizasse o drama dos italianos imersos na destruição e miséria que o fascismo de Mussolini e a Segunda Guerra trouxeram para o país. Os filmes de diretores como Roberto Rosselini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti eram ficções que se aproximavam do documentário em seus temas e em sua estética. Eles costumavam filmar em locações reais, produziam com pouquíssimos recursos financeiros, utilizavam atores amadores que muitas vezes atuavam como eles mesmos e contavam histórias de trabalhadores comuns da sociedade italiana. Formado pela junção de marxistas e católicos que rejeitavam o fascismo, os neorrealistas se preocupavam em alcançar uma estilística transparente que pudesse relatar o mundo como ele é, para que assim o humano fosse visto em sua totalidade, desvelado. O neorrealismo italiano foi o movimento que trouxe o humanismo para dentro do cinema.

Praticamente todas as características do neorrealismo italiano estão presentes em Rio, 40 Graus. Características que vão ser aproveitadas pelo Cinema Novo através do que Nelson fez neste seu primeiro longa.

O filme mostra um dia na vida de várias pessoas no Rio de Janeiro, tendo como foco cinco meninos negros moradores de uma favela que passam o dia vendendo amendoim nas ruas da cidade para que possam comprar uma bola de futebol. Nelson Pereira dos Santos passa então a mostrar o sucesso ou fracasso de cada um na cidade e intercala com histórias de personagens que cruzam com os meninos pelas ruas da cidade, criando assim uma elaborada multitrama com várias histórias de vários personagens repleta de encontros e desencontros durante um dia.

Esses personagens vão de um casal de negros que estão prestes a noivar, passa por um outro casal formado por uma migrante e um marinheiro que passam por dificuldades de relacionamento, mostra turistas estrangeiros visitando lugares famosos do Rio, segue uma final de campeonato de futebol no Maracanã do ponto de vista dos jogadores, cartolas e torcedores, vai até a vida burguesa dos frequentadores da praia de Copacabana e mostra a chegada de um político ignorante e corrupto à cidade que na época era a capital do país.

Falando assim, o filme poderia até ser uma colcha de retalhos formada por episódios isolados, se não fosse pela direção certeira de Nelson. Já de início ele deixa claro suas intenções com o filme ao começar com planos aéreos do Rio de Janeiro, filmando os lugares icônicos da cidade, tudo isso ao som de “A Voz do Morro”, do sambista Zé Keti (que foi assistente de câmera e também atuou no filme), só que não como um samba, mas com um arranjo elegante executado por uma orquestra. No fim da apresentação dos créditos, a câmera abandona os pontos turísticos da cidade e vai de encontro à favela e seus moradores. É partindo dessas pessoas que o filme vai construir um panorama da sociedade carioca.

Cinematograficamente, o maior feito de Nelson foi conseguir lidar com vários núcleos com perfeição. Ele alcança isso de duas formas. A primeira é resolvendo tudo em um mesmo plano, com personagens de duas histórias diferentes em um mesmo local e a câmera que prestava atenção em um personagem, fluindo para o outro de forma natural, uma transição elegante. A outra forma é através da montagem, que consegue dar agilidade ao filme. E mais importante ainda, junto com a estruturação do roteiro, ela cria um jogo dialético que revela os contrastes necessários para que o filme escancare a realidade social da capital brasileira.

Inclusive, é quase surreal olhar para os problemas que o filme aponta e perceber que depois de 65 anos eles ainda estão presentes na sociedade brasileira.

Assim como nos filmes do neorrealismo italiano, a principal preocupação de Rio, 40 Graus é a construção de um olhar capaz de revelar a sociedade de forma nua e crua. E é isso que Nelson se propôs ao abordar esses vários núcleos ao mesmo tempo. Ele utiliza muito bem as diferenças de cada personagem e trama para expor características que fazem parte da identidade do país. A desigualdade racial e social (a bela e triste sequência do zoológico e a sequência do bondinho são exemplos claros), a corrupção da elite do país, a importância dada ao futebol no país, a vida boa da elite carioca, as diferenças regionais, a miséria dos morros e o samba como identidade de um povo são explorados dentro das tramas em uma estrutura que evidencia acima de tudo as contradições estruturais que parecem reger a nação. Inclusive, é quase surreal olhar para os problemas que o filme aponta e perceber que depois de 65 anos eles ainda estão presentes na sociedade brasileira.

É então com uma ironia trágica que Nelson vai sintetizar a complexa e contraditória realidade revelada por sua encenação. Uma ironia que parece ser a única coisa capaz de solucionar o paradoxo de uma sociedade com uma identidade tão rica e esperançosa e possuidora de injustiças estruturais causadoras de sofrimentos e tristezas incessantes.

Rio, 40 Graus está disponível na Globoplay.

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.