“Tormenta”, livro de Thaís Oyama, é aula de jornalismo
Arnaud Mattoso*
Em 29.12.2020
Nesse estranho Natal de 2020 ganhei de presente o livro-reportagem “Tormenta”, escrito pela jornalista Thaís Oyama, sobre o primeiro ano do governo de Jair Messias Bolsonaro. Eu estava ansioso para lê-lo, desde o lançamento em janeiro deste ano. A edição da Companhia das Letras é primorosa com 267 páginas em papel pólen soft, fotos em preto e branco de alguns personagens citados e notas explicativas das fontes de informação utilizadas para compor a obra.
A experiente jornalista tem passagem como repórter, editora e redatora na revista Veja e já passou por importantes veículos de comunicação como Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e sucursais da Rede Globo em Brasília. Portanto, não é uma profissional qualquer, ela tem experiência para lidar com os meandros da política. Essa experiência lhe dá credibilidade para obter das fontes os bastidores de um dos governos mais polêmicos, desde a redemocratização do país, em 1984, com a eleição indireta no Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves.
O que o noticiário da televisão, rádio, jornais e mídias digitais mostrou à sociedade sobre o governo Bolsonaro no ano passado, no auge dos confrontos e dos ataques às instituições republicanas e à democracia do país, é quase nada diante dos bastidores palacianos do Alvorada. É nos bastidores onde se revela a face real dos governos e o jornalismo cumpre o papel de os revelar a partir das fontes que os vivenciam.
A crise mais aguda ocorreu entre abril e junho e o leitor tem a sensação de que o risco continua, mesmo por hora temporizado, porque Ele continua lá; despachando com o seu poder executivo vigiado, mas se envenenando da mesma mentalidade tacanha que faz parte do todo de sua personalidade.
É assustador que sessenta e sete milhões de eleitores tenham caído no canto populista do discurso “mudar tudo isso que taí”, quando tudo o que o Brasil precisava era fortalecer as instituições e reduzir o personalismo de rebanho, herdado do lulismo-petista, e de pacificar as diferenças ideológicas, ao invés de acentuar o confronto entre elas. Não houve nem mudança significativa no combate à corrupção, nem pacificação ideológica, muito menos o fortalecimento das instituições.
As instituições democráticas, apesar de se mostrarem resilientes aos ataques virulentos do “gabinete do ódio” palaciano e dos fanáticos extremistas do bolsonarismo, foram testadas com insistência pelo presidente da República. A indicação de Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal e de Augusto Aras para a Procuradoria Geral da República são apenas dois exemplos num oceano de desconstruções.
A interferência na Polícia Federal com a indicação para a superintendência do suspeitíssimo Alexandre Ramagem, atual chefe da Agência Brasileira de Inteligência; a mudança do Coaf para o Banco Central, saindo da alçada do Ministério da Justiça; a saída do ministro Sérgio Moro, símbolo maior da luta contra a corrupção; e o abandono da promessa de campanha em favor da operação Lava-Jato são indicativos de que a bandeira anticorrupção é parte de um passado ao qual nunca foi realmente imprescindível para o presidente eleito. “Logo ficou claro que a nomeação de Moro era negócio bem melhor para Bolsonaro do que para o juiz” (pag. 71).
Mostraram-se falsas as bandeiras econômicas de modernização do Estado com as reformas estruturantes da Previdência, tributária e administrativa, a gestão na economia liberal e as privatizações para reduzir o imenso déficit fiscal brasileiro. Elas nunca estiveram na pauta de Jair presidente, menos ainda na pauta de Jair deputado. Isso se comprova ao longo de vinte e oito anos de atuação medíocre na Câmara dos Deputados, em Brasília.
“Desde que chegou à Câmara, aos 35 anos, até o seu último dia de mandato, aos 63, Bolsonaro se limitou a apresentar, quase sempre como coautor, emendas de interesse dos militares, propostas jamais aprovadas para a área de segurança e ideias que foram direitas para o anedotário do Legislativo” (pag. 11).
A carreira política de Jair Bolsonaro teve início na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, depois de “pedir para sair do Exército Brasileiro para se livrar da ameaça de expulsão, desonra suprema, após ser processado e absolvido em julgamento até hoje contestado”, escreve a jornalista na página 35, “depois de romper com a hierarquia e a disciplina da instituição”. Bolsonaro liderou um plano para instalar bombas na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, a ESAO. A reportagem saiu na revista Veja. Para capitalizar a notoriedade que lhe deu a publicação, o ex-oficial se candidatou a vereador, sendo eleito em 1988.
O que se extrai de concreto dessa carreira longínqua na política é a inclusão dos três filhos e da primeira ex-mulher na política local carioca e nacional em Brasília. Ou seja, o uso da benesse política em benefício próprio, da família e dos amigos. A máquina pública e viciada a serviço de si e dos seus, sem jamais querer “mudar tudo isso que taí, pô”.
O quesito “filhos” é uma das partes mais assustadoras do livro, revelada pelos bastidores da apuração impecável de Thaís Oyama. Todos os quatro meninos são doentinhos como o pai, mas Carlos Zero Dois é de fato: “O filho é usuário de medicamentos para estabilização do humor” (pag. 96). A jornalista levanta uma pauta interessante para a imprensa nacional: revelar em detalhes qual tipo de problema psicológico tem o vereador carioca Carlos Bolsonaro.
Mais surreal é o Zero Dois pedir licença da Câmara Municipal do Rio para atuar no terceiro andar do Alvorada, onde “bagunça o coreto” e influencia as decisões do pai-presidente no comando do denominado “gabinete do ódio”. Pelo livro, aprendemos que o filho problema é o protegido de Jair Bolsonaro e que, de certa forma, o presidente atribui a Carlos parte do sucesso na eleição de 2018 pela campanha nas redes sociais.
O livro apresenta situações de bastidores do presidente com todos os notórios personagens desta república de vento: Fabrício Queiroz, Frederico Wassef, Gustavo Bebiano, Hélio Lopes, Joice Hasselmann, Paulo Guedes, Damares Alves, Ricardo Salles, Abraham Weintraub, Olavo de Carvalho, Filipe Martins, Tercio Arnaud Tomaz, o vice Hamilton Mourão, general Augusto Heleno e demais oficiais de alta patente, além de diversos outros personagens menos populares na mídia, mas não menos relevantes.
Ao longo da leitura, a paranoia crônica do personagem Jair é apresentada em fatos públicos pela perspectiva dos bastidores. E é essa mania de perseguição e de insegurança emocional que leva o presidente a brigar com a humanidade; sejam líderes mundiais, como o presidente francês, Emmanuel Macron, e a primeira-ministra alemã, Ângela Merkel; ou amigos, como Gustavo Bebiano e Hamilton Mourão, e de rejeitar especialistas renomados para colaborar no governo como foi desconvite à cientista política Illona Szabó para participar do Conselho de Segurança, no Ministério da Justiça, após convite do então ministro Sérgio Moro.
A instabilidade emocional e as tomadas de decisões sem o mínimo de racionalidade provam que Jair Bolsonaro não tem uma mente cognitiva capaz de avaliar o tamanho da responsabilidade da função presidencial, nem entendeu a liturgia do cargo. Como uma Dilma Rousseff na versão masculina, cuja disfunção cerebral assombrou o Brasil e se assemelha a do atual mandatário, Jair Bolsonaro precisa ser contido em seus desvarios psicóticos.
Um desprezível anacronismo que não cabe no mundo globalizado da diplomacia.
A paranoia o leva a se sentir ameaçado no jardim do Alvorada por drones e fuzis de longo alcance; de suspeitar que o vice-presidente Mourão o espiona e grava suas conversas; ou enxerga como inimigo qualquer um que pense diferente dele. São as mesmas características das lideranças no regime comunista na Guerra Fria, dos anos mil novecentos e sessenta, e do maluquinho Kim Jon-un, o atual líder coreano. Um desprezível anacronismo que não cabe no mundo globalizado da diplomacia.
O livro-reportagem de Thaís Oyama é uma delícia de jornalismo de altíssima qualidade. A obra atende aos critérios de quem não gosta e não votou no candidato Bolsonaro, mas também orienta quem votou nele e não virou gado, ruminando ideologias sem conexão com a realidade. Para quem faz parte do rebanho “Jair acima de tudo e de todos”, a obra pode ser um antídoto a esse malefício. Sempre há possibilidade de cura. Costumo dizer a quem se arrependeu deste voto que o problema não é errar, é se apegar ao erro.
Não foi o meu caso, porque faço parte dos trinta milhões que anularam o voto no segundo turno em 2018, pelo fato de não me sentir representado por ambos os candidatos e em protesto contra a ideologia extremada dos grupos que eles representam. Agora, torço e tenho a esperança de uma eleição mais racional em 2022 e menos “atípica”, para usar a palavra da moda em 2020. É preciso mais do que o sentimento antipetista para se construir uma nação. Um estadista precisa ter conteúdo, gentileza, dignidade e inteligência emocional; o populista apenas esbraveja tolices num balão de ensaio vazio.
*Arnaud Mattoso é jornalista e escritor.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Excelente crítica. Deu vontade de ler o livro imediatamente. Preciso entender porque o psís com suas instituições democráticas aceita… e peemanece
boa tarde, grato pela leitura e pelo comentário. Sim, recomendo o livro como fonte de conhecimento e aprendizado não apenas para este caso específico, mas em todos à nossa volta. O aprofundamento na literatura nos ajuda a entender melhor os assuntos, indo além da notícia factual diária. abs cordiais e permaneça com a gente no Falou e Disse.