Saúde pública: o que precisamos reaprender com Cuba para enfrentar a Covid-19
Veronica Almeida*
Em 09.01.2021
Nas últimas semanas as boas notícias sobre Cuba têm chamado a atenção. Enquanto outros países colecionam mortos por Covid-19 e vivenciam uma segunda onda da pandemia, a ilha socialista ganha manchetes pela ocorrência de óbitos muito abaixo do que estamos acostumados a ver no Brasil e no mundo e pelo empenho para desenvolver medicamentos e vacinas contra o novo coronavírus.
Com aproximadamente 11,3 milhões de habitantes, Cuba registrou do início da pandemia até o último dia 4 de janeiro de 2021, segundo dados oficiais do seu Ministério da Saúde, 12.964 casos confirmados de Covid-19 e 147 mortos. O município de São Paulo, com um contingente populacional só um pouco maior, de 12,3 milhões de pessoas, confirmou no mesmo período 488.654 adoecimentos e 15.724 mortes pelo novo coronavírus. Em Pernambuco, onde vivem 9,6 milhões de pessoas, 223.845 adoeceram e 9.691 tinham falecido até a mesma data, número 65 vezes maior que o total de óbitos contabilizados pelos cubanos.
A indústria biotecnológica cubana tem mais de 30 produtos em diferentes fases de desenvolvimento, incluindo antivirais, estimuladores do sistema imunológico, anti-inflamatórios e vacinas contra Covid-19. A expectativa é iniciar a imunização contra o SARS-CoV-2 neste primeiro semestre com uma produção própria, cujos ensaios clínicos estão entrando na fase dois.
O que podemos aprender, ou melhor, reaprender com Cuba? Respeitadas as devidas diferenças de sistema político, papel do Estado na saúde pública e características culturais entre os dois países, algumas medidas seriam plenamente compatíveis. O sucesso ora atribuído a Cuba no controle da Covid-19 pode estar relacionado ao diagnóstico diferenciado e ao tratamento precoce por uma combinação de medicamentos. Mas, na verdade, não se resume a uma medida isolada. Associa uma vigilância epidemiológica competente (apoiada por capital humano e tecnológico), investimento em ciência para estudo e desenvolvimento de testes diagnósticos, fármacos e imunobiológicos, e uma assistência médica e de enfermagem qualificada em todos os níveis de complexidade.
O protocolo cubano busca ativamente os infectados e seus contatos, garantindo a eles, a partir da Atenção Primária, diagnóstico, isolamento rápido e assistência completa na sua rede totalmente pública e devidamente organizada. O Programa de Médico e Enfermeira da Família, implantado há 37 anos no país, não é um mero coadjuvante nessa luta. Além disso, deve haver uma facilidade para sensibilizar pessoas previamente educadas, que mais facilmente assimilam as recomendações sanitárias. Educação é prioridade em Cuba. Como tem sido, ao que parece, a busca por soluções caseiras para o desenvolvimento de seu arsenal terapêutico e de imunizações – um passo importante para não depender unicamente de um mercado globalizado, pouco blindado a interesses excessivamente lucrativos e suscetível a uma disputa naturalmente esperada diante da catástrofe sanitária mundial.
O sistema de saúde brasileiro, fruto da luta que restituiu nos anos 80 do século passado a democracia no país, é muito precioso para ser desperdiçado e maltratado num momento tão crítico como o que vivemos.
Estar presente em todos os níveis da assistência à saúde e aproveitar as joias da casa (ciência, tecnologia e capital humano), eis a grande lição cubana que o Brasil deveria valorizar! O sistema de saúde brasileiro, fruto da luta que restituiu nos anos 80 do século passado a democracia no país, é muito precioso para ser desperdiçado e maltratado num momento tão crítico como o que vivemos. Não exatamente único como se pretendia desde a sua criação – pois tem recebido feições discordantes no imenso território administrado por modelos e desgovernos políticos, como o excesso de terceirização, vínculos precários dos profissionais e desmandos de toda a ordem -, o SUS oferece, mesmo assim, respostas que nenhuma outra política pública no país consegue ofertar. Quase a totalidade da população depende só dele e a minoria, mesmo pagando plano privado de saúde, recorre ao SUS sem saber. Os controles epidemiológico e sanitário de atividades, alimentos, medicamentos e vacinas são totalmente da saúde pública.
Investir e qualificar o SUS em todos os seus níveis e atribuições é fundamental neste momento. Falando especificamente da assistência aos infectados e ações de controle da transmissão do coronavírus, a Atenção Primária, que a população conhece na forma de Unidades Básicas de Saúde (UBS), das equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e de policlínicas, tem um papel fundamental. Tão e talvez até mais importante do que a rede de UPAs e hospitais que recebem os sintomáticos com média e alta gravidade. Mas, qual tem sido o papel da Atenção Primária nessa pandemia em todo o território nacional?
Com a chegada do novo coronavírus em fevereiro de 2020 e diante de um cenário jamais visto nos dias atuais, postos de saúde fecharam ou tiveram suas equipes mobilizadas para outras portas de entrada: UPAs, hospitais e teleatendimento. Sem contar nas baixas de profissionais por infecção ou condição de risco. Mas não teria sido importante manter essas equipes, devidamente protegidas, nas comunidades, identificando e testando a população, atuando para isolamentos em família ou em espaços comunitários como criaram algumas associações populares em São Paulo e no Rio de Janeiro?
Nove meses depois do início da pandemia, postos e policlínicas começam a retomar a rotina. E pelas queixas que muitos profissionais de saúde publicam em suas redes sociais, as equipes se deparam não só com velhos problemas – como a falta de EPIs e a dificuldade de acesso à testagem pra Covid-19, identificados na pesquisa Desafios da Atenção Básica no enfrentamento da pandemia de Covid-19 no SUS, publicada em julho de 2020 pela Rede de Pesquisa em Atenção Primária em Saúde (Rede APS) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Há uma multidão de sequelados pelo novo coronavírus exigindo atenção aos desconfortos respiratórios, dores e fraquezas musculares, problemas renais, neurológicos, cardiovasculares e sofrimento mental pelo adoecimento físico, medo, estresse ou perda de pessoas queridas. Some a isso a nova leva de infectados buscando ajuda do SUS, no posto do bairro.
A Atenção Básica está ligada às prefeituras, mas depende de financiamento federal e de apoio estadual, seja com estímulo financeiro, capacitação, ordenamento regional e na construção das interligações dessa rede com os serviços de média e alta complexidade.
Essa Atenção Primária precisa estar tecnicamente e materialmente preparada. Os profissionais foram devidamente capacitados para a nova realidade de triagem, diagnóstico, tratamento da infecção e das sequelas? As equipes são suficientes? Trabalham em espaços adequados, que permitem estar mais próximas da comunidade que atende, sem aglomerações e em ambientes arejados e equipados? Contam com medicamentos, testes rápidos pra Covid, oxímetro, oxigênio ou outro suporte para uma assistência local? Qual a rede de apoio organizada e disponível para receber quem precisa de fisioterapia em casa ou na unidade de saúde, quem necessita de exame e acompanhamento cardiológico ou pulmonar, e de assistência psicológica? Que apoio pode-se oferecer para o autocuidado e à reabilitação física (muscular e respiratória) e emocional por meio de práticas integrativas presentes em unidades de saúde de 4.296 municípios brasileiros, como acupuntura, terapia comunitária integrativa, yoga, meditação, tai chi chuan, etc.? São perguntas que a gestão do SUS precisa responder e em todos os níveis, do comando federal ao municipal, passando pelo estadual. A Atenção Básica está ligada às prefeituras, mas depende de financiamento federal e de apoio estadual, seja com estímulo financeiro, capacitação, ordenamento regional e na construção das interligações dessa rede com os serviços de média e alta complexidade.
O controle social direto, por meio dos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde, e indireto, pelo Ministério Público, Tribunais de Contas, Controladorias e Judiciário, tem que estar atento.
Nesse contexto e iniciando-se o segundo tempo da pandemia, é importante não só os novos prefeitos e os reeleitos cuidarem da Atenção Primária nos seus territórios. A mobilização dos profissionais de saúde, das entidades que os representam, da população usuária e de quem tem poder de formar opinião e articular estratégias (ativistas, pesquisadores, universidades, ONGs) precisa ser constante. O controle social direto, por meio dos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde, e indireto, pelo Ministério Público, Tribunais de Contas, Controladorias e Judiciário, tem que estar atento. Quem foi eleito para representar o povo no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores também tem por obrigação atuar em favor da saúde pública.
Fortalecer a Atenção Primária em Saúde (o SUS mais próximo do cidadão), ao mesmo tempo que articular estratégias em todos os níveis do sistema para que não faltem campanhas educativas, diagnóstico (clínico e laboratorial), imunização, uma assistência especializada e intensiva, além de qualificada e transparente vigilância às doenças, é promover um sistema universal. Política essa que consegue promover igualdade num país desigual, atendendo indígenas, quilombolas, populações rurais e urbanas, pobres, médias e ricas ao mesmo tempo.
É hora de reaprender com Cuba (que nos ajudou a implantar a Estratégia Saúde da Família) e consertar os fragmentos do SUS: valorizar a experiência e a competência acumuladas nesses 30 anos do sistema de saúde, que contempla da sabedoria do Agente Comunitário (ACS) no diálogo com a comunidade à tecnologia mais avançada na pesquisa e produção de vacinas. Que tal aproveitar as joias da casa que fizeram história exportando conhecimento e sendo referência em alguns momentos para o resto do mundo, a exemplo das campanhas de vacinação de crianças e idosos aos elogiados programas de tratamento da Aids e de combate ao AHN1 em momentos bem recentes?
Se o cenário político é complexo e disperso, a sociedade precisa agir para provocar as mudanças. O SUS não é de esquerda, centro ou direita, embora tenha avançado e se consolidado sob o comando de governos rotulados de centro-esquerda. É uma política democrática, instituída pela Constituição Federal de 1988, fundamental, direito de todos e DEVER do Estado (portanto de configuração mais socialista sim), patrimônio de um país que deveria se orgulhar dela e não pode nem deve aceitar resignadamente a cifra de mais de 200 mil mortes por Covid-19.
*Veronica Almeida é jornalista, especialista em Saúde Pública e em Direitos Humanos e mestre em Ciência da Informação.
Foto destaque: Ismael Francisco/Cubadebate/Fotos Públicas