Artesãs e artesãos da vida

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 14.01.2021

Alguns de nós são principiantes na arte da vida. É assim que me enxergo. Nessa reflexão, pelo entendimento da vida, ponderamos que não há um mundo pronto e nem tampouco relações estabilizadas, concluídas, prontas, tudo é uma construção permanente.

A vida humana é um constante reelaborar, refazer e ressignificar.  Trago a metáfora da tessitura do infinito cachecol humano que por si é inconcluso, inacabado. Essa é sua essência. O cachecol humano não termina nunca, porque muitos fios da sua tessitura são desmanchados continuamente pelas artesãs e artesãos da vida para lhes garantir um novo e mais bem elaborado contorno relacional. É preciso novas elaborações, criar uma nova estética. Cores são trocadas, fios são substituídos, são necessários ajustes e assim segue a arte da vida com seu reconstruir diário.

Uma mão sozinha nunca consegue avançar muito na arte de conduzir o fio da vida. Esse contexto gera muitas fragilidades. As artesãs e artesãos da vida carecem de muitas mãos para fiarem o cachecol humano, feito de gente, mas raramente acertam o ponto. Existem mais erros que acertos, muitas vezes, e comumente necessita-se de inúmeras e infinitas alterações. Diversos fios no tear da vida e das relações são desmanchados diariamente, para seguir outra tessitura, outras direções relacionais.

O desafio de percebermos o outro como extensão de nós mesmos é muito difícil, porque somos muito autocentrados.

Um ponto importante nessa abordagem é pensarmos que a outra pessoa nunca nos vê como a gente se vê. Existe um hiato na forma que enxergamos a si e ao outro que dificulta muito as relações humanas. O desafio de percebermos o outro como extensão de nós mesmos é muito difícil, porque somos muito autocentrados. A tônica geralmente que conduz as relações é: eu gosto ou eu não gosto; eu quero ou eu não quero. É muito centrado no eu e nunca no nós. Nessa direção, vamos nos fragmentando, nos afastando do outro numa espécie de autoproteção e quanto mais nos “protegemos” do outro, mais frágil nos tornamos.

Outro aspecto interessante para nossa reflexão é que o outro é um espelho para nós. Observem e revejam o papel do espelho para cada um de nós. O espelho nos mostra como estamos diante de nós mesmos, diante da vida. O que aparentemos? Como estamos? Como somos vistos? Precisamos de ajustes? É preciso arrumar melhor algo em nós? O espelho mostra bem isso. Assim, a outra pessoa com a qual nos relacionamos é o nosso melhor e mais assertivo espelho.  Márcia Baja, arquiteta, budista, nos ensina que as relações difíceis são muito importantes para nós, para a gente saber o que deve ser trabalhado em nós internamente. Precisamos das outras pessoas para irmos nos ajustando, nos melhorando. Aquela pessoa que nos critica está trazendo algo para nós que precisa ser melhor observado, visto. Dói, sim, porque mexe com nossa autoestima, nossos valores, nossas vaidades, ego e, também, muitas vezes, o dito é feito de forma não cuidadosa e não afetuosa, causando dificuldades. Contudo, merece atenção. A crítica é uma dimensão que merece ser trabalhada.

O olhar amoroso estabelece uma conexão energética, espiritual.

Os nossos acertos, erros, falhas, equívocos etc., são melhores balizados e refletidos por meio das relações que estabelecemos com o outro. O outro é nosso mestre na arte da vida. Eis o verdadeiro tecelão na arte de viver. Precisamos estar mais conectados uns aos outros. Olhar para as pessoas. O olhar é uma forma de comunicação. O olhar amoroso estabelece uma conexão energética, espiritual. Muitas vezes tropeçamos e atropelamos as pessoas com nossa indiferença e não as cumprimentamos, não interagimos, não nos preocupamos para saber como estão na seara da vida. Será se estamos aproveitando devidamente a nossa existência finita? O quanto humanizamos as nossas relações? É importante percebermos que quando alguma pessoa adoece a humanidade adoece também, é só olharmos ao nosso entorno e verificarmos se está tudo bem, se estão todos saudáveis e felizes, não existe separatividade. Pura ilusão. A conta chega de alguma forma. Todos precisam ser vistos e cuidados.

Vi essa frase no Instagram do perfil Jardim_Consciente e teve todo um sentido para mim: “Você merece ser amada por simplesmente existir”. Achei muito assertiva e genuína. Todas e todos merecem ser amados. Mas, parece que não fizemos o dever de casa direito. Ou faltamos algumas muitas aulas nesse quesito. Esse contexto relacionado ao amor me remeteu ao eterno retorno, cunhado pelo filósofo Friedrich Nietzsch, de caráter não-cíclico, como um puro devir, ou ao pensamento do filósofo como o ser mesmo do devir. Ou como diz também o filosofo Gilles Deleuze, integrar o eterno retorno ao niilismo do próprio Nietzsch. Niilismo ressignificado e recriado por Nietzsch quando aposta na vida com sua vivência no aqui e agora, no devir, se contrapondo ao niilismo que encara a vida desprovida dos valores do momento presente para alcançar uma vida a posteriore, numa suposta vida futura, num “paraíso cristão ou numa sociedade ideal anarquista”. Penso o amor como esse devir, por isso lembro o eterno retorno de Nietzsch, lugar, sentimento, movimento, ação, em que todas e todos devem vivenciá-lo e que seja breve, porque as pessoas, penso, estão cansadas do desamor, do desgosto de não serem ouvidas, incluídas, acolhidas, vistas, amadas incondicionalmente nas suas singularidades.

O amor. Ah, o amor! Não quero nesse momento pensar no amor enquanto conceito ou arcabouço teórico, mas enquanto prática social, como movimento que nutre os seres, que é capaz de dotar a vida de sentidos, de provocar encontros humanos, de alimentar almas sedentas de afetos, atenção, escuta, interação, acolhimento, compreensão, interlocução, que as pessoas sintam que estão interligadas uma às outras, em que mãos e corações se estendem na sua direção.

Vejo o amor como eterno devir, como construção permanente, e não como algo pronto, que precisa atingir algum estágio para ser agraciado com o tal e tão falado amor. Esse para mim é inatingível. Morto. Pronto. Concluso.  Não me adequo. O amor que imagino, nutro, aspiro, tento desenvolver, aprender e praticar é o amor que se constrói com erros, acertos, ajustes, idas, vindas, equívocos, curvas, pedras no caminho, interrupções, prosseguimentos, fragilidades, dificuldades, alegrias no caminhar.

Artesãs e Artesãos na arte de amar, na arte da vida não podem esquecer, a meu ver, as singularidades da gente. Cada pessoa tem sua forma de apreciar a vida, conceber as coisas, enxergar as pessoas, e tem também o seu jeito de amar. Essa dimensão humana precisa ser vista. Não precisa cancelar gente, se afastar das pessoas, ao contrário, o convite do amor que acredito é integrativo, precisamos interligar uns aos outros, ininterruptamente, enxergar e provocar encontros, unir as pessoas. Perceber que todos somos falhos/as. Quando se amplia o olhar, a mente e o coração para enxergar melhor o outro e compreendê-lo, e a nós mesmos, esses são atos de amor.

A solitude é importante, as relações necessitam de espaço para florescer, é legitimo isso, mas nem sempre o que está no script consegue acontecer na prática cotidiana relacional tal qual se pressupõe que aconteça. Entram nesse contexto as nossas subjetividades, permeadas por nossas histórias pessoais e coletivas, nossas marcas de vida, com suas dores e alegrias. O amor é construção, eterno devir, elo fundamental para as artesãs e os artesãos da vida darem consistência a existência humana. Contudo, como aprendizes e principiantes na arte da vida, quando abrirmos espaços nos nossos corações e nas nossas mentes para escutar o outro, interagir, estamos amando e dotando a vida de sentidos. Vamos aprender a dar a vez ao outro. Em algum momento esse outro somos nós também. Cada vez que ampliamos a nossa forma de praticar o amor desprovido de conceitos, mas relacionados ao fazeres humanos, temos mais possibilidades de sermos mais assertivos. Nada está pronto. Não tem relação pronta, embora se pudéssemos promover mais encontros humanos poderíamos aprender melhor a arte de tecer os fios das nossas existências. E cada encontro deveria ser momentos de celebrações, pois os encontros são laboratórios de aprendizagens humanas, espaços de tessituras do amor. As relações nunca se acabam, pois os rastros humanos permanecem, elas apenas se adequam a outros movimentos e a novas direções. Portanto, gente não se deve ser deixada para trás, seres humanos devem ser amados por simplesmente existirem.

Aspiro que a dança da vida nos propicie enlaces relacionais que nos tornem mais saudáveis, de corpo, mente, espírito e coração. Estamos, nesse mês de janeiro, na Campanha do Janeiro Branco, que mostra o adoecimento da nossa sociedade, de nossa gente, e nos chama a atenção para a urgência de convivências humanistas, afetuosas, cuidadosas consigo mesmo, com a outra pessoa e com a vida. Precisamos abrir espaços para o outro. Para escuta, o acolhimento, o aconchego, a compreensão e a interação humana, condição sine qua non para a continuidade digna das nossas humanidades.

Bem, utilizando a licença poética do memorável Raul Seixas, com sua música, Metamorfose Ambulante, deixo fios de esperança, de amor e um abraço apertado, na minha tessitura como aprendiz artesã da arte da vida e do amor: Prefiro ser/ Essa metamorfose ambulante/Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/Eu quero dizer/Agora o oposto do que disse antes/ Eu prefiro ser/ Essa metamorfose ambulante/Do que ter aquela velha opinião/ Formada sobre tudo/ Sobre o que é o amor/Sobre o que eu nem sei quem sou.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

Foto destaque: sbcoaching.com.br