Apaixonada(o) pela vida
Vera Lúcia Braga de Moura*
Em 28.01.2021
Reconhecer a impermanência e a finitude humana nas nossas experiências de vida é muito importante, pois essas perspectivas nos indicam outros valores que podemos atribuir no nosso dia a dia. Cada dia que passa vemos as mudanças que acontecem conosco, com nossas relações, com a sociedade, em que ocorrem situações que consideramos boas, outras não tão boas, às vezes aviltantes, mas nos mostram o quanto a impermanência, as mudanças nos perseguem. A morte também é fato. Somos finitos, temos um tempo limite na terra.
Diante dessas evidências, como podemos conduzir melhor as nossas vidas? Olho ao meu entorno e observo as mazelas advindas da nossa sociedade, das distorções, negligências, equívocos, descompromissos governamentais com as vidas humanas. Não temos como pensar nas nossas relações com o mundo, a vida, as pessoas, a natureza sem nos relacionarmos com o contexto do qual fazemos parte. Tudo está relacionado com tudo. Somos seres relacionais.
Mas, mesmo diante de todas essas questões, é interessante nos apaixonarmos pela vida. Vocês já pararam para pensar como é valiosa a finita existência humana? A paixão é aquele sentimento que nos move e nos alegra para o mundo. Como olhar para a vida apaixonadamente e de forma desapegada? É um grande desafio. Diz o monge tibetano Mingyur Rinpoche que se prender ás coisas é como tentar segurar o ar com as suas mãos.
Pergunta o monge: como nós reagimos diante dos desafios e questões indesejáveis da vida? Como reagimos à percepção de ser menosprezado, rejeitado, desrespeitado, um pneu furado, diagnóstico de uma doença incurável, perda de um emprego, perda de pessoas queridas, entre tantos outros dissabores que vivenciamos na vida? Conseguimos permanecer estáveis, acolher as dificuldades que experienciamos ou implodimos de raiva, tristeza e descontrole?
As rupturas e impactos da vida nos desmontam. É como se estivéssemos descendo ladeira a baixo, caindo, nos afogando. Buscamos nos agarrar em algo para encontrar terreno firme e, muitas vezes, encontramos apenas a nós mesmos. Algum de nós já experimentou estar bem, saudável, equilibrado e em algum momento desmoronar, como sugere ainda o monge Mingyur Rinpoche? Não conseguimos segurar as pontas e nosso chão se desfaz. Precisamos de muita resiliência e serenidade para recuperar a estabilidade de novo. Daí, surgem tantos sofrimentos emocionais.
As sutilezas e complexidades humanas não nos permitem estabelecer padrões que definam quais relações são mais assertivas ou corretas no convívio interpessoal.
Lembrando que somos seres relacionais e que tudo existe em relação com alguém ou alguma coisa. Ressaltamos a importância do outro nas nossas vidas e ponderamos quando esse outro não pode estar ao nosso lado, por razões diversas, nos ouvindo, acolhendo, cuidando, algo que só o amor e afeto, termos tão gastos e desacreditados atualmente, podem compreender. As necessidades humanas são inúmeras e delicadas. As sutilezas e complexidades humanas não nos permitem estabelecer padrões que definam quais relações são mais assertivas ou corretas no convívio interpessoal. Existem relações mais saudáveis, mais afetuosas, mais parceiras, mais sintonizadas, em que as pessoas vão aprendendo a melhor forma de se relacionarem. Tudo na vida é construção e reelaboração.
Assim, apaixonado pelo mundo, nome de um livro autobiográfico escrito pelo monge Mingyur Rinpoche, me atraiu bastante. O referido livro relata muitas experiências complexas, mas que mesmo diante dos desafios da vida ele mostra que a vida humana é preciosa, e a experiência da vida é incrível, embora tenhamos nossos desafios e dissabores. Um trecho do livro diz: “não podemos mudar a dor diretamente; mas podemos mudar a nossa relação com ela, e isso pode reduzir o sofrimento” (2029, p.204).
Diz também que podemos conter a tristeza e não se afogar na dor. E que o amor incondicional por nós mesmos e por todos os seres é o caminho para uma vida apaixonada e feliz. Sei que essa ideia é fascinante, mas chega a soar como um sonho, utopia. Perguntaram uma vez ao jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano para que servia a utopia. Ele disse: para continuarmos vivendo, caminhando. Então, a utopia tem sua serventia. Além de nos possibilitar esperançar a vida, a utopia nos mobiliza para a vida.
Nesse momento de pandemia nos deparamos com tantas tristezas, desalentos e desencantos, situação essa que nos leva muitas vezes a buscar refúgio no âmago do nosso ser e nas leituras, porque parece que está havendo um desmonte das nossas humanidades. Estamos muito distantes uns dos outros, caminhando muito fragmentados, apartados. O filósofo alemão Martin Heidegger diz que o ser humano moderno está distante de sua pátria, perdeu suas origens, se afastou de sua essência.
O convite é retornarmos a nossa essência, nos apaixonarmos pela vida, por nós mesmos, pelas outras pessoas, pelos seres, mesmo com suas adversidades e limites. É verificarmos a melhor forma para contribuir com relações mais saudáveis, mais respeitosas, mais acolhedoras e mais amorosas. E isso passa obviamente pela política pública. A forma que vivemos, como nos relacionamos não está desvinculada das questões sociais, econômicas, culturais e históricas. Somos produtores de história e cultura. Com isso, também não eximo a nossa responsabilidade com as outras pessoas e conosco. Cuidar de si e do outro é condição sine qua non para desfrutarmos vivências dignas e saudáveis.
Reconhecer as singularidades de cada um, cada uma, e compreender que não tem jeito certo, mas formas de pensar, sentir e agir diferentes.
Talvez uma das formas para se viver melhor seja tentarmos encontrar um caminho do meio. E esse trajeto poderá ser permeado por caminhos não lineares, com suas curvas, desvios, mas com uma certa leveza, e precisamos abraçar as incertezas. Reconhecer as singularidades de cada um, cada uma, e compreender que não tem jeito certo, mas formas de pensar, sentir e agir diferentes. E que nós podemos ser pedagógicos e educativos por meio do afeto, da generosidade, ajudar a outra pessoa a encontrar o caminho de volta. Assim poderemos viver apaixonados pela vida.
Tem uma crônica da escritora Clarice Lispector que traduz um pouco para mim o que seria essa leveza e essa vida apaixonada. A poesia de Clarice chama-se : Das Vantagens de ser bobo. Recorto alguns trechos: “O bobo por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo/ Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída, porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia/ Aviso: Não confundir bobos com burros/ Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera/É uma das tristezas que o bobo não prevê/É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor/ E só o amor faz o bobo”.
*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.
Foto destaque: Internet
Lindo texto!
Obrigada Maelda!!!
Tenho certeza que este valor a vida e as pessoas próximas, já descobri a bastante tempo, pois quando perdemos um amor, nossa vida fica pelo fio, pois não sabemos muitas vezes o que fazer, só quando passa a dor um pouco. É que tomamos um caminho certo e perfeito do que queremos e podemos fazer um pelo outro. Então, temos a certeza que nossa missão tomou o rumo certo. E viva a vida.
Obrigada Zita.
Que bom vc por aqui. Saudades.
Ótimo comentário. Abraços.
Parabéns por mais esse texto Vera. Concordo com você quando coloca sobre nos apaixonarmos pela vida, isso é fundamental para vivermos bem. Também reintero quando você coloca que não existe o certo, existem diferentes formas de ser e de viver e nós apaixonados pela vida precisamos com amor respeitar o modo de viver de cada um ser humano. Vamos amar e respeitar as diferenças. Ótima reflexão Vera.