121 anos de um ‘valente’ feito de ‘ferro e de flor’

Por

Roberto Arrais*

Em 14.03.2021

No seu livro de Memórias, escrito pelo próprio Gregório Bezerra, no exílio, ele começa dizendo: “Segundo minha avó e minha mãe, nasci em 13 de março de 1900, num sítio chamado Mocóis, no município de Panelas de Miranda, Estado de Pernambuco. Filho de camponês paupérrimo e analfabeto. Foi um ano seco, de muita fome e muita sede, que matou o nosso reduzido rebanho de carneiros e cabras, esturricou a nossa lavoura e quase nos matou de fome e de sede”. A sua história passou a ser contada a partir da dor enfrentada pela sua família e a de milhões, especialmente de famílias camponesas que sofrem no cotidiano pela falta de políticas agrárias decentes, pelo baixo preço de suas produções, como também, pelos processos de expulsão e de entrada cada vez mais forte do agronegócio no campo, que muitas vezes chega com boi, bala, soja, cana, queimadas e destruição das pessoas e do meio ambiente. Ele teria completado 121 anos de nascimento ontem, sábado 13 de março.

O poeta Ferreira Gullar escreveu em versos a “História de um Valente”, fazendo referencia à trajetória revolucionária de Gregório Bezerra. Num de seus versos ele consegue sintetizar a figura deste filho de Panelas, quando diz: “(…) Mas existe nesta terra/ Muito homem de valor/ Que é bravo sem matar gente/ Mas não teme matador/ Que gosta de sua gente/ E que luta a seu favor/ Como Gregório Bezerra,/  Feito de Ferro e de Flor (…)”.

“Feito de Ferro e de Flor”, sintetiza a figura extraordinária de Gregório, que viveu pedaços muito difíceis ao longo da vida. Começou a trabalhar na enxada aos quatro anos de idade. Perdeu seus pais aos sete anos. Com dez anos mudou-se para Recife para trabalhar como doméstico. A promessa de colocá-lo na escola, um de seus sonhos,ficou na conversa, mas ele saiu dessa casa. Foi criança moradora de rua, trabalhou como carregador de fretes, vendedor de jornais, ajudante de pedreiro. Foi preso pela primeira vez com apenas 17 anos, em 1917, por participar do movimento grevista que tomava conta do Brasil naquele momento, tendo como bandeira principal a luta pela jornada de oito horas de trabalho.

Depois de mais de cinco anos de prisão, Gregório viajou para o Rio de Janeiro e entrou no Exército. Aprende a ler e escrever, fez concurso e foi aprovado numa seleção nacional de sargento. Tornou-se instrutor de tiro ao alvo e de educação física. Ao voltar para Recife ingressou no Partido Comunista e se casou com Maria Bezerra, natural de Panelas. Participa do “Levante antifascista de 1935”, na luta da Aliança Nacional Libertadora (ANL). Tomou o quartel, ficou com as armas, mas não aparecem os trabalhadores que o PCB disse que teria para participar do levante. Foi novamente preso e passou dez anos encarcerado. Foi anistiado em 1945, com a redemocratização do Brasil e foi eleito deputado Constituinte, sendo o segundo mais votado do estado.

Gregório Bezerra ao lado de Luiz Carlos Prestes, também deputado Constituinte, em foto de 1946.

Gregório teve um comportamento considerado exemplar por muitos como parlamentar junto com a bancada comunista, que contava  comfiguras de destaque a exemplo de Carlos Mariguella, Jorge Amado – seu camarada e referência em sua vida – e Luiz Carlos Prestes, que o abrigou em sua casa no Rio de Janeiro durante o exercício do mandato.

Somando 200 mil filiados e atraindo para seus quadros artistas, poetas, escritores, operários, camponeses e estudantes, o PCB passou a mobilizar a sociedade brasileira com a segunda maior rede de comunicação do País – jornais em cada estado, emissoras de rádio, editora e outras formas de ligação com o povo. Isso incomodou as elites e grande parte das forças armadas ligadas ao imperialismo dos EUA que fazia crescer a tensão no mundo com a chamada “Guerra Fria” com a União Soviética. O presidente do Brasil, Marechal Dutra, reacionário de direita, junto com o TSE e a maioria do Congresso, especialmente com os setores reacionários, montou uma farsa e cassou o registro do PCB, cassando todos os mandatos federais, estaduais e municipais que o partido havia conquistado.

No dia da cassação Gregório estava na tribuna defendendo projetos voltados a assistir e apoiar crianças em situação de vulnerabilidade social e de rua.

Dias depois de cassado foi sequestrado quando saía da casa onde estava morando – residência de Luiz Carlos Prestes – para ir ao escritório que o PCB ainda mantinha, no centro do Rio. O colocaram num avião para João Pessoa (PB) onde havia contra ele a acusação de “ter incendiado o 15º Regimento de Infantaria”´. O incêndio já havia sido noticiado nas rádios e jornais do país, responsabilizando os “comunistas” que “estariam se vingando do Exército por terem sido cassados”.

Acusado de ter sido o incendiário desse quartel Gregório foi preso e processado. Depois foi transferido para a Casa de Detenção do Recife – hoje a “Casa da Cultura de Pernambuco” – para responder ao processo que foi dirigido pelo ex-governador/interventor de Pernambuco, Eraldo Gueiros Leite. O processo foi desmoralizado, pois Gregório, que na época tinha direito a falar em sua defesa e o fez de forma brilhante e corajosa, denunciou a farsa e nominou os verdadeiros responsáveis pelo incêndio, forjado pelos próprios generais e coronéis, para imputar a culpa nos comunistas.  Práticas não muito diferentes das existentes nos tempos atuais.

Gregório foi liberado, mas por duas vezes tentaram matá-lo na prisão. Foi salvo por pedras que atirados com recados salvadores.  Ao sair da prisão entrou para clandestinidade, indo para o interior de Goiás, Mato Grosso e região com nova identidade. Passou cerca de dez anos nessas atividades junto aos camponeses lutando pela paz, pela sua organização e pela liberdade.

Ao voltar a Pernambuco foi preso em Serra Talhada, tendo sido logo liberado – governo de JK. Com mais liberdade, o PCB, que continuou se reorganizado na clandestinidade, passou para uma semilegalidade. Gregório atuou nas campanhas de Cid Sampaio para governador, em 1958, de Miguel Arraes para Prefeito do Recife, em 1959 e de governador em 1963.

Gregório, pelas suas raízes e seu compromisso com o campesinato e as famílias camponesas, aceitou a convocação do partido para ajudar a organizar os sindicatos de trabalhadores rurais do estado. O fez de forma dedicada, como tudo que fazia em sua vida, e Pernambuco passou a ter um dos mais pujantes movimentos sindicais de trabalhadores rurais do Brasil. Além do trabalho extraordinário que vinha sendo realizado pelas Ligas Camponesas, que também tinha tido forte participação de Gregório e do PCB.

Veio 1964, o golpe civil-militar, os processos forjados, toda essa bandalheira que as elites praticam para tentar atacar a imagem e a história dos lutadores e lutadoras sociais, especialmente dos comunistas e socialistas.

Gregório tinha avisado a Dr. Arraes que havia “sinais de golpe”, que as elites não queriam e não estavam aceitando as “reformas de base”, a política de promoção de melhorias na vida dos trabalhadores, e por isso ele pediu “armas para o povo defender o governo popular”.  O governador disse que não acreditava nessa possibilidade, que era cedo para avaliar essa situação. Arraes e Gregório tinham uma boa relação de amizade e de companheirismo construída nos processos de campanha e de governo.

Veio o golpe, a violência se estendeu pelo país. Prisões, perseguições, intervenções nos sindicatos, cassações de mandatos… O PCB recomendou cuidado a seus militantes, que deveriam encontrar esconderijos seguros e aguarder novos comunicados sobre a situação. Gregório tinha conversado muito com os agricultores/as sobre a possibilidade do golpe e a necessidade de reagir.

No dia do golpe, em 1º de abril, Gregório dirigiu-se ao Palácio de Campo das Princesas para tentar pegar as armas que havia solicitado e assistiu à distância o governador sendo preso por não ter aceitado renunciar ao mandato. Foi destituído por manter a coerência e a coragem, dizendo aos seus algozes militares que o procuraram para pedir o apoio ou a renúncia, “que só cabia ao povo que o colocou naquele cargo.”  Foi preso. Ele conseguiu argumentar da necessidade de os trabalhadores irem para casa e aguardar os acontecimentos e novas comunicações. Mas ficou uma grande frustração para ele e para os trabalhadores, que na discussão, argumentaram em ir a Recife de foice e estrovenga defender o governo popular de Arraes.

Gregório foi para Palmares e tentou contato com o comitê municipal. A cidade estava ocupada pelo Exército e ele foi para “(…) os engenhos de Catende, Palmares, Água Preta, Gameleira, Ribeirão e outros, onde havia concentração de massa à minha espera, conforme tínhamos combinado antes. Diante da impossibilidade de conseguir armas, ia desfazendo as concentrações. Na sede do sindicato de Ribeirão, encontrei mais de duzentos trabalhadores esperando as armas que eu tinha ido buscar (…)” –  Memórias Gregório Bezerra – Boitempo Editorial, 2011 – p. 529.

Nessas andanças ele foi reconhecido e preso.

Gregório foi barbaramente torturado no Quartel de Motomecanização, em Casa Forte.  Amarrado por três cordas no pescoço, foi sendo levado e arrastado pela Avenida Dezessete de Agosto, para que na Praça de Casa Forte, fosse enforcado. O comandante pedia a população para espancar Gregório, mas as pessoas que passavam diante daquela cena, não respondiam, não apoiavam. Estavam estarrecidas diante da crueldade manifestada pelo Exército, que através de seu comandante e colegas de farda, praticavam cenas dantescas, hediondas e inacreditáveis. Gregório reagia com força, galhardia, como os homens raros, corajosos, respondendo, enquanto tinha forças, as provocações.

Ele foi salvo pela solidariedade do povo e das irmãs do Colégio Sagrada Família, que diante daquele horror, ligou para o Comandante do IV Exército e pediu providências urgentes para acabar com aquele ato de selvajaria e covardia. O general mandou suspender a ação e Gregório foi conduzido para o Forte das Cinco Pontas.

Durante seu processo Gregório sempre colocava seu ponto de vista com relação ao golpe e a repressão. Seu julgamento era uma farsa. Tudo estava predeterminado, dizia ele: “(…) Para mim, o julgamento não passava de uma simples formalidade. Já sabia que seria condenado a vinte anos de prisão e que o Conselho iria apenas referendar uma decisão que já estava tomada pelos gorilas militares. (…) Alguns fotógrafos presentes ao julgamento, bateram fotos. Oficiais que estavam ali presentes avisaram que “não deviam popularizar” meu nome, mas algumas fotos acabaram publicadas (…)”. (Gregório Bezerra Memórias – Boitempo Editorial, 2011 – p.565).

Assim funcionava na época da ditadura civil-militar implantada em 1964 o Poder Judiciário, com raras exceções. Com o agravante de que os chamados “crimes de subversão” eram “julgados” pela Auditoria Militar, que era composta por militares escolhidos a dedo pelos  generais que tinham no “currículo” suas obstinadas atividades anticomunistas.

Gregório tinha um grande afeto pela sua advogada e defensora, a Dra. Mércia de Albuquerque, que fazia visitas semanais a ele, discutia com profundidade o processo, se preparou muito bem e ficou muito decepcionada com o resultado: condenação a 19 anos de prisão.  Ela ficou muito triste e seu marido, quando visitou Gregório na semana posterior ao julgamento, disse que ela estava triste e envergonhada com o resultado do processo, se sentia fracassada na missão de o absolver.

Gregório então faz uma carta belíssima, sensível, destacando esse lado extremamente humano e solidário, destacando, entre outros trechos, o seguinte: “(…) Disseram-me que você ficou chocada com a condenação; isso é uma prova da sua consciência sadia e do seu imenso desejo de amenizar, ou mesmo libertar seus clientes. Todavia, nossos julgadores não pensam como você nem são possuídos de corações profundamente humano como o seu. Eles agem automaticamente em função de uma classe (…) Não foi surpresa para mim e, para ser franco, estou preocupado em fazer um exame de consciência para saber o que fiz de errado para merecer a diminuição de um ano em minha condenação, pois esperava vinte anos no mínimo e só me deram dezenove anos, o que foi que eu fiz? (…)” – Memórias G.B. p. 638.

Vivemos isso ainda no presente na nossa frágil democracia dominada pelas elites que impõem seus interesses e sua ideologia, que tem sob seu controle as mesmas forças do chamado aparelho de estado. Situações muito parecidas com essas, como no processo de condenação do ex-presidente Lula, que foi violentamente denunciado pela grande mídia em conluio com o judiciário, a Polícia Federal, as Forças Armadas. Foi condenado, preso, impedido de ser candidato, de dar entrevistas etc., em processo sem provas materiais.

Gregório Bezerra, fez, via depoimentos e escritos seus, uma resumida biografia integrada pelos acontecimentos da sua prisão e tortura nas ruas de Recife, como também sua vida carcerária, seus encontros com figuras como o Padre Henrique, seus familiares, advogados e os seus depoimentos junto aos promotores e julgadores. Esse escrito se transformou no seu primeiro livro publicado pelo PCB na clandestinidade, em 1967,sob o título: “Eu, Gregório Bezerra, acuso”. Gregório continua presente nas agricultoras/res sem terra, nos trabalhadores/as sem teto, nas crianças em situação de rua e abandono.

Gregório Bezerra continua presente, inspirando as atuais gerações para que continuem lutando e se organizando na defesa do socialismo.

Gregório, Presente!

*Roberto Arrais é jornalista(repórter-fotgráfico) e mestre em Gestão Pública. Foi vereador do Recife.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Gregório Bezerra/Roberto Arrais. Imagem registrada no dia da volta de Gregório Bezerra do exílio, em 1979.