Maternidade negra, ética de cuidado coletivo e políticas públicas

Por

Charlene Borges*

Em 28.03.2021

“O ditado omo k’oni ohun o ye, ìyá ni ko je e – uma criança sobrevive e prospera apenas pela vontade de Ìyá – sugere o papel fundamental que Ìyá desempenha no bem-estar da criança. Ìyá não é apenas a doadora do nascimento; Ìyá também é uma co-criadora, uma doadora de vida, porque Ìyá está presente na criação” Oyèronke Oyĕwùmí

A maternidade é um tema que costuma despertar paixões e polêmicas espinhosas no âmbito dos feminismos, sobretudo aquele fundamentado na teoria clássica ocidental em razão da histórica desigualdade de gênero na divisão sexual do trabalho entre os espaços público e o privado. Nesse contexto teórico, a maternidade fora vista como um entrave para a mulher em relação à luta pela equidade, acesso a melhores oportunidades de trabalho e realização pessoal de seus projetos de vida. De igual modo, à maternidade, em outros primas teóricos, já se atribuiu a condição de ferramenta do patriarcado para o controle social dos corpos das mulheres, sendo o controle reprodutivo também um instrumento de reprodução de força de trabalho para o Capital.

No entanto, essa perspectiva universalizante do que é ser mulher não é mais aceitável, em razão de outros pontos de vista epistemológicos, bem como pela existência atual de visão multifacetada dos feminismos com contribuições de outros recortes, como o feminismo negro, feminismo indígena e decolonial. Assim, para se analisar as problemáticas vivenciadas pelas mulheres, não se pode mais partir de uma concepção universalizante do que é ser mulher e a maternidade também não pode ser lida por essa lente.

È bem de ver que as reflexões relativas à desigualdade sexual que envolve a dicotomia do espaço público versus espaço privado não se amoldam totalmente à realidade das mulheres negras, eis que estas tiveram, após fim da escravidão, que ir em busca do mercado de trabalho para garantia da sobrevivência, notadamente, em funções laborativas precárias e subalternizadas. O reduto do lar nunca foi o ambiente compulsório de aprisionamento e controle da mulher negra, tampouco os papeis sociais de esposa passiva, mantenedora da vida doméstica não são familiares à sua realidade.

Outra premissa estabelecida pelo feminismo hegemônico, de que a maternidade é instrumento patriarcal de controle social dos corpos das mulheres a serviço do poder dos homens, não é a melhor maneira de se explicar a origem da opressão que envolve o maternar negro. Tanto as dores quanto as vantagens da maternidade, no que diz respeito às mulheres negras, possuem um viés especifico, sobretudo se pensarmos que as matrizes da maternidade na concepção ancestral africana não é generificada e não possui um sentido individualista.

A maternidade pode ser fonte de redenção, potência e afeto, mas também pode ser fonte de opressão, sobretudo por conta dos efeitos colaterais da precarização das condições de vida que afetam mulheres negras. 

Mulheres negras ainda são as maiores vítimas de violência obstétrica e não possuem a observância do direito ao parto humanizado, eis que a condição de humanidade ainda é um objetivo a se perseguir.

Veja-se que, historicamente, os direitos reprodutivos de mulheres negras foram violados, por conta de campanhas institucionalizadas pelo Estado para esterilização em massa com o intuito de controle de natalidade e redução da pobreza.

Mulheres negras também são as mais atingidas pela mobimortalidade materna, pois 60% das mulheres que morrem de morte materna são negras. É importante ressaltar que a morte materna é considerada uma morte prevenível e que em 90% dos casos poderia ser evitada se as mulheres tivessem atendimento adequado.[1]

Mulheres negras também são maioria entre as “mães solo”[2], as quais são responsáveis em pela chefia dos lares brasileiros e convivem, ainda, com a insuficiência de creches disponibilizadas pelo Poder Público para acolhimento de suas crianças. Mães negras são, ainda, as que sofrem com as políticas de encarceramento de seus filhos e o extermínio da juventude negra.

Com a colonização, escravidão, o capitalismo e a modificação das configurações familiares, a noção de espaço privado da maternidade tomou forma, de modo que o ônus da maternagem é atribuição solitária da mãe. Quem não pode contar com apoio arca com os cuidados e educação dos filhos de maneira sobrecarregada.

Nesse sentido, convém relembrar que a maternidade negra na tradição ancestral e filosófica africana era vista como um espaço de Matripotência. No momento do nascimento, duas entidades nascem – um bebê e uma Ìyá, na cultura Yorubá[3]. Aquela que é alçada à condição de Iyá possui destaque e reverência em sua comunidade e é dotada de poder de decisão e prestigio na ocupação dos espaços públicos e privados, em graus de equidade.

Frise-se, ainda, que na cultura africana, os filhos não são apenas da mãe de sangue, mas de toda a comunidade. Existe uma herança ancestral de ética de cuidado coletivo. Um conhecido proverbio nigeriano informa que “precisa-se de uma aldeia para criar uma criança”. 

Patricia Hiil Collins[4] informa que é inegável reconhecer que atribuir apenas à figura da mãe biológica a responsabilidade pela maternagem nem sempre é uma opção sensata ou mesmo viável na vida de mulheres negras que ainda estão em busca da materialização do conceito de dignidade da pessoa humana em suas vidas. A rede de apoio que pode contar com a colaboração de avós, vizinhos, irmãs, familiares ou outras mulheres que ajudam as mães de sangue- e dividem com elas a responsabilidade pela maternagem- têm um papel central na instituição da maternidade negra.

A realidade da criação de filhos por mais de uma pessoa existente nas famílias afroamericanas não é diferente do que ocorre aqui no Brasil, eis que boa parte das mulheres negras que trabalham fora deixam seus filhos aos cuidados de familiares ou outras mulheres da comunidade e, inclusive, remuneram-nas na medidas de suas condições financeiras limitadas e muitas vezes trabalham para cuidar das famílias e filhos de mulheres brancas.

Nesse sentido, deve o Estado institucionalizar a ideia de rede de apoio para a maternidade, não devendo isto ser apenas ônus da comunidade, mas sim medida reparativa às práticas opressivas ocasionadas pela omissão no provimento de políticas públicas.

Ademais, é preciso honrar o legado de que a maternidade é nutridora, edificante e um compromisso coletivo, não devendo ser limitada apenas à figura da mãe de sangue.

Collins, ao tratar das imagens de controle que envolvem a maternidade tece uma crítica importante à imagem de controle da “mãe negra super forte”. Aquela que tudo suporta e por vezes acaba renunciando a sua dimensão sentimental, em razão de não haver tempo para o maternar pautado no afeto. Essa condição ocorre, evidentemente, por conta do histórico de violência, privação e desumanização que passaram a compor o cotidiano da mulher negra e, consequentemente, influenciou a forma de se estabelecer em família. È preciso lembrar que o contexto escravista retirou o direito à vida em família e relações de afeto entre a população negra.

A ausência de políticas públicas que priorizam a proteção constitucional da maternidade é a realidade em nosso país, sendo uma das fontes de opressão para mães. Porém, a ideia de que o cuidado materno deve ser restrito à figura única da mãe também é igualmente opressiva.

Assim, embora para algumas, a maternidade possa configurar um obstáculo à liberdade, violência e impotência, para outras mulheres, a maternidade é capaz de promover a elevação pessoal, sendo, inclusive, catalisadora para o ativismo social. [5]

Mulheres lutam por melhorias de vida para si e para sua família. Mulheres lutam por educação, sustento e pela liberdade de seus filhos. As mães, sejam as de sangue, criação, afetivas ou comunitárias, querem e podem fazer do mundo um lugar melhor. O pensamento ancestral africano de que “Ter filhos é considerado a bênção suprema de orixás e ancestrais”[6] não diz respeito a um projeto individualista, mas sim a uma ética de cuidado e crescimento do coletivo.

*Charlene Borges é Defensora Pública Federal. Mestranda em estudos de Gênero e Feminismos/UFBA.

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.