O plano, a ira e uma CPI no meio do caminho

Por
Ayrton Maciel*
Em 13.04.2021
Respeito à Constituição e às leis, aos direitos humanos, às liberdades de expressão e de imprensa, ao ir e vir, ao contraditório e às provas. Este é o estado de direito. A democracia é o estado direito. As ressalvas para períodos de crise – como o da pandemia da Covid-19 que aflige o mundo – são exceções, como diz a semântica da palavra, e fazem parte da democracia. Nela, o poder é tripartite e deve ser harmônico. Na republica federativa, a União, estados e municípios têm competência concorrente para decidir. Por isso, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a autonomia das unidades federativas para adotarem medidas de exceção, na ausência e omissão de um poder central.
Sem o partilhamento do poder, a mais atrevida autoridade, o mais violento governante, poderia atribuir a si todos os poderes – sem exceção – para negar os fatos, contrariar os contrários e satisfazer seus prazeres, noções e seus inspirados sectários. Sem a repartição, o mais inculto e fundamentalista soberano seria capaz de outorgar a si o direito divino – ter recebido de Deus o poder -, e imputar-se de uma missão. Com a decisão, o STF reafirma que partilhamento e exceções são do espírito da democracia, essências às quais templos e igrejas estão submetidos.
Há mais de um ano, o Brasil está em uma guerra que já lhe causou uma mortandade jamais registrada no país por outra guerra: a pandemia da Covid-19. A Guerra do Paraguai (estimativa de 50 mil brasileiros mortos), a Primeira Guerra Mundial (156 militares da Marinha), a Gripe Espanhola (35 mil) e a Segunda Guerra Mundial (457 expedicionários) não geraram tantas perdas, insegurança e aflições. Diante dos avanços da ciência e da tecnologia, o mundo não imaginava que uma nova guerra mundial fosse contra uma pandemia. Mais provável seria uma guerra nuclear. Porém, a Covid-19 obrigou a ciência mais avançada a pular etapas para oferecer vacinas em tempo recorde.
Neste mesmo período, o presidente da República, Jair Bolsonaro, rebela-se contra as medidas restritivas de governadores e prefeitos: começou indo à TV e rádio dizer que “era só uma gripezinha”, atacou o STF por reconhecer a autonomia de estados e municípios para impor restrições, desafiou a todos negando-se a usar máscaras e gerando aglomerações, “prescreveu” medicamentos para tratamento precoce sem comprovação científica, acionou o Supremo contra opositores que adotaram lockdown, incita a população a desrespeitar as autoridades e recai em insinuações ameaçadoras, como o Estado de Sítio e um golpe contra os poderes constituídos.
A noite brasileira tem sido longa desde 2018. Mas, a madrugada de 2020 para cá está sendo a mais fria e incompassiva da República brasileira. Seguindo os exemplos, os negacionistas contestam a gravidade da pandemia, a quantidade de mortos e a eficácia das vacinas, multiplicam nas redes sociais as fake news contra os fatos e a favor de suas teses, e saem às ruas comportando-se como Bolsonaro, sem máscara e com agregações, para pregar o golpe contra as instituições, tendo o próprio presidente à frente. Enfrentando a ira dos negacionistas, o STF é mais uma vez achincalhado, agora por declarar constitucionais as restrições de governadores e prefeitos à abertura de igrejas e templos.
O Brasil tem uma pandemia no seu caminho, assim como no mundo. A gravidade é maior aqui por ter um negacionista na presidência, zombando da mortandade brasileira e boicotando o seu enfrentamento. Como todo dia precisa haver um fato que satisfaça o seu ego narcisista, o ódio reforçado de Bolsonaro e seus negacionistas contra o STF – em razão da ordem do ministro Luiz Barroso de que o Senado instale a CPI da Pandemia – agora será dividida com a Câmara Alta. A Covid-19 não foi capaz de conter o plano ideológico de governo de conturbar, confundir, irradiar fakes e finalmente conflagrar o país, condição para dar causa a um golpe e a uma ditadura.
Os últimos anos têm sido tão ridículos e perigosos que o plano evidente – sem preocupação com dissimulação – nos torna uma caricatura de republiqueta de terceiro mundo. O histórico – e agravado pela pandemia – quadro de exclusão social é combustível e instrumento tático de manobra para Bolsonaro. Ele não vai parar com a incitação à radicalização no país, a não ser que o Congresso Nacional o enquadre ou dê um basta: o impeachment. O negacionismo mente com um cinismo impressionante, não se impõe limites e continuará a fortalecer a insanidade de Narciso.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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