Os números são gostosos e podemos construir escadas
Alcivam Paulo de Oliveira*
Em 20.04.2021
Chegando uma raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas e cobiçou-as. Começou a fazer tentativas para subir; porém, como as uvas estavam altas e a subida era íngreme, por muito que tentasse não as conseguiu alcançar. Então disse:
– Estas uvas estão muito azedas, e podem manchar-me os dentes; não quero colhê-las verdes, pois não gosto delas assim.
E, dito isto, foi-se embora. (ESOPO)
Na quinta série (hoje seria o sexto ano), estudada no Colégio Abreu e Lima, em Peixinhos, no Recife, quase que o professor Avelino me reprova em matemática. Fui para a final… Claro, minhas dificuldades foram provocadas, em parte, pela passagem de estudos com uma professora quase tia, como era dona Cleide, na escola Sara Kubitschek, para estudos com diversas matérias e professores numa escola maior. Mas, além disso, eu tive que estudar numa escola privada (pois não tinha ainda a idade definida pela Lei da Educação para estudar em escola do Estado) onde meus colegas eram quatro ou cinco anos mais velhos que eu, e isso me deixava pressionado. Seja por um ou outro motivo, o fato é que havia aquelas coisas estranhas de números com letras, de operações novas… enfim, um horror!!!
Veio a sexta série na escola Estevão Pinto, em Aguazinha, e a felicidade de encontrar o professor Luiz, de ter colegas de idade mais próxima e outras coisas que não sei identificar. A partir dali, virei fera em matemática: adorava razão e proporção e equação do primeiro grau, que me faziam resolver os famosos “problemas” matemáticos.
Daí em diante, só fui ter problemas sérios com química orgânica. Nunca consegui entender direto aqueles desenho com traços e letras. Ao longo da vida acadêmica e profissional, sempre namorei bem com os números. Até que um dia um colega me convidou para dar uma aula numa turma de nono ano. O tema: qual o sentido de se aprender matemática? Senti-me todo enrolado, porque não queria dizer o óbvio: a matemática está em tudo… Queria dizer a eles que não tivessem ojeriza de matemática, que não vissem os números e suas operações como monstro que devora caráteres e dignidades de pessoas. Queria dizer a eles que o gosto desses números não pode ser traduzido pela nota em caneta vermelha na prova, nem faz de ninguém um nerd… Não sei se consegui.
O fato é que fui me dando conta de um fenômeno: no mundo profissional da educação, no mundo acadêmico da pesquisa em política educacional (e das ciências humanas em geral), na formação de professores, essa ojeriza, esse afastamento dos números também é uma constante. Não é estranho afirmar que isso acontece em todos os campos da vida: do consumo à gestão do orçamento doméstico, da noção de área ao entendimento de médias e percentagem.
Desconfio que professoras e professores do Ensino Fundamental I escolhem o curso de pedagogia por vocação, mas também porque não querem matemática no currículo. Ou não? Se sim, será normal que suas aulas de português e de outras disciplinas, sejam mais bem preparadas que as de matemática, e assim eles vão educando o gosto de seus alunos. Desconfio que pesquisadores acadêmicos na área de políticas educacionais privilegiam as pesquisas qualitativas (válidas e necessárias) menos pela crítica epistemológica ao quantitativo que pela dificuldade de manejá-lo. Desconfio, enfim, que se paga juros absurdos em qualquer compra, porque o desconhecimento de seu cálculo leva o consumidor a focar no preço da parcela.
Agora, se a matemática é uma linguagem humana para ler e interpretar a realidade, portanto equivalente às outras linguagens, por que a deixamos sob o manejo de especialistas? Por que a tememos? Afinal, os nossos cérebros e esquemas mentais, ao que pese a variabilidade entre indivíduos, são iguais. Sim, há experts em matemática como há em tudo. Há vocações para as mais diversas habilidades, sendo, portanto, aceitável que uns tenham mais facilidades que outros no manejo dos números. Mas não é que todos sejam experts em matemática, não é disso que se trata… se trata da alfabetização em matemática.
Ao nos deparamos com números na economia, na pesquisa política, nas regras de compras a prazo, nos dados das políticas públicas, precisamos entendê-los minimamente. Não é o preço de cada latinha de cerveja, mas a relação entre a quantidade de seu conteúdo e o preço por litro; não é o valor do que se recebe no salário, mas o que essa quantia pode comprar; não é o que cada pessoa paga de imposto, mas o percentual dessa quantia em relação ao que se recebe. É o conceito de proporcionalidade e seu potencial de nos fazer prever o futuro, medir sem usar uma régua ou saber como distribuir o recurso ao longo do tempo. Precisamos aprender não a fórmula da equação, mas a ideia de conhecer por meio de inferências e deduções lógicas, apropriando-nos de seu poder e de suas fraquezas.
E por que não conseguimos? Seria por que não gostamos de matemática e por não gostarmos não nos interessamos? Ou, ao contrário, por não sabermos é que dizemos não gostar? E se a raposa soubesse e pudesse construir escadas ou usar uma vara para derrubar as uvas? Certamente que não sairia destratando as pobres (e deliciosas) uvas.