O mito elitista do self-made-man

Por

Enildo Luiz Gouveia*

Em 22.04.2021

Quando no início da minha juventude decidi que entraria numa universidade, no tempo em que não havia ENEM ou algo parecido, tinha que peitar o vestibular das universidades públicas. Como todo candidato a “fera” procurei estudar e, particularmente, arrumar emprestado os livros necessários, visto que não tinha dinheiro para comprá-los nem para fazer cursinho.

Naquela época, havia uma premiação dada por órgãos de TV aos primeiros colocados (geral e por cursos/áreas), e salve engano, em nenhuma das vezes que acompanhei o processo, algum estudante de escola pública tirou o primeiro lugar geral. Os “crânios”, “CDFs” sempre foram das grandes redes de escolas privadas que ainda hoje investem pesadamente para que seus estudantes alcancem os primeiros lugares.

Após conseguir ser aprovado, parei de prestar atenção nessas coisas. Até porque, li certa vez que parte dos estudantes que retiravam as melhores notas e posições nos vestibulares, nem sempre se tornavam bons estudantes nas universidades, e não raramente, abandonavam ou trocavam de curso. Outro fato que passei a observar é que, mesmo nas universidades públicas, existem os cursos para os pobres e os cursos para a classe média e alta. Cursos diurnos onde os estudantes passam o dia inteiro nas universidades em geral tinham estudantes cujos pais conseguiam bancá-los. Fora isto, pra frequentar curso diurno só com bolsas de pesquisa, extensão etc, o que na época era limitada. Além disso, os critérios de acesso a tais bolsas deixavam muita gente de fora. Já os cursos noturnos, com raríssimas exceções, eram ocupados por estudantes em dupla jornada: estudante e trabalhador/a. Lembro-me de um professor de Economia que disse ser um absurdo ter aulas noturnas nas universidades.

Esta situação e outras me fizeram refletir sobre o mito do self-made-man, ou seja, o mito do homem que se faz por si mesmo (em tradução livre). Em outras palavras, o mito da meritocracia. Passei a me perguntar qual é o mérito de uma pessoa que sempre frequentou as melhores escolas, teve acesso a saúde, lazer, alimentação correta, moradia, apoio da família etc, em passar num vestibular? Não seria algo natural, visto que esta pessoa teve acesso às coisas que a maioria da população não teve? Seria quase como uma consequência determinística diante das condições vividas. Não se pode negar que o esforço individual conta muito para que cada um alcance seus objetivos, mas isto é suficiente como dizem os experts em auto-ajuda? As condições externas não podem tornar seu esforço sem efeito? Como no caso dos estudantes que passam ou passaram fome, sem atendimento a saúde, escola, etc. Sabe-se que a carência vitamínica compromete o intelecto. Em outras palavras, com fome não se consegue pensar. Como uma pessoa nestas condições consegue competir de igual para igual com quem na vida inteira só teve uma única preocupação que foi a de estudar? Quando alguém vindo da pobreza consegue furar esta bolha, prontamente se difundi o discurso enganoso que “se ele/a conseguiu, qualquer um consegue”, numa clara tentativa de transformar a exceção em regra. Tal discurso, na maioria das vezes, romantiza o sofrimento das pessoas sem tecer uma crítica aprofundada da questão. Pois, seria justo que alguns para “vencer na vida” tenham que sacrificar boa parte da vida no trabalho insalubre, onde não raras vezes se contraem sequelas para o restante da vida? Enquanto outros já nascem, crescem e continuam no “berço de ouro”?

No campo profissional também este argumento meritocrático vira uma armadilha ideológica que busca justificar o status quo da sociedade. Se for verdade que cada um está no lugar que galgou, como explicar que mais de 60% da população carcerária no Brasil é formada por negros e pobres? Toda esta população buscou estar nesta situação ou as condições externas atuaram neste quadro? Na outra ponta da sociedade, tem-se que a maioria dos magistrados brasileiros, sobretudo das altas cortes, assim como a classe médica e de outros segmentos são brancos. Fácil deduzir que estes frequentaram os cursos diurnos que falei acima.

Toda vez que alguém me fala de meritocracia eu faço a seguinte pergunta: Se o glorioso Santa Cruz/PE (meu time de coração) jogasse contra o Barcelona, Real Madri, Juventus, quem você acha que teria mais chances de ganhar? A resposta é sempre a mesma, ou seja, vitória do adversário. Ai eu faço outra pergunta: Mas, como você deduz isto visto que, no discurso meritocrático se são 11 jogadores contra 11, a possibilidade de vitória do Santa Cruz seria a mesma? Ai a pessoa me responde que os outros times tem mais condições.

Espero ter ajudado na reflexão sobre o mito elitista do self-made-man!

*Enildo Luiz Gouveia é doutor em Geografia, professor, poeta, compositor e membro da Academia Cabense de Letras – ACL.