Mente que eu te escuto

Por
  • Alcivam Paulo de Oliveira*

Em 01.05.2021

CHICÓ: Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo cuidado, porque o cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem um momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço e enchocalhei ares, olhei ao redor, e não conhecia o lugar onde estávamos. Tomei uma vereda que havia assim e aí tangendo o boi…

JOÃO GRILO: O boi? Não era uma garrota?

CHICÓ: Uma garrota e um boi.

JOÃO GRILO: E você corria atrás do dois de uma vez?

CHICÓ (irritado): Corria, é proibido?

JOÃO GRILO: Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos, sem se
apartarem. Como foi isso?

CHICÓ: Não sei, só sei que foi assim. (O AUTO DA COMPADECIDA – Suassuna, A.)

Ariano, o Suassuna, ensinou que há dois tipos de pessoas mentirosas, a do bem e a do mal. A do bem não é apenas divertida, mas necessária. Desse tipo há desde o caçador que mata onça com o susto, passando pelas pessoas que juram terem conversado com a perna cabeluda, chegando aos grandes escritores e escritoras ficcionistas. Aliás, o próprio Ariano mentiu muito no Alto da Compadecida, escondendo-se atrás de Chicó, o paradigma desse tipo de mentiroso.

Precisamos deles. Em Peixinhos, Williams era conhecido. Sabíamos que metade das coisas que ele contava era pura invencionice, mas nunca deixamos de escutá-lo: a noite, em frente lá de casa, éramos sua plateia. Mesmo que ao final um ou outro dissesse: deixa de ser mentiroso! Ninguém ousava interromper a história. Um Chicó só nosso. Os Williams e os Chicós da vida aguçam nossa imaginação enquanto nos diverte.

Já aquele tipo de pessoa mentirosa do mal, mente por malícia e para levar vantagem. Mente por patologia social. Sonsa, se faz de sabida ou de burra, de inocente ou esperta… Se faz até de coveiro para… vocês sabem. O danado é que antes acreditávamos que bastava desmascarar esse tipo de mentira e tudo estaria resolvido, porque a “mentira tem pernas curtas”. No tempo das “fake news” é de se perguntar: será?

O sucesso dos dois tipos de mentiras depende do público, de quem as ouve. Se não der ouvido às mentiras, a pessoa mentirosa desiste. Williams, Chicó e tantos outros, não existiriam, a ficção não existiria se não houvesse a plateia para lhes assegurar audiência. O mesmo acontece com os mentirosos do mal. Eles e suas mentiras só se proliferam se houver quem lhes dê ouvidos. Mas quem haveria de dar ouvidos a algo que vai lhe prejudicar? Parece ilógico, não é? Mas aí estão os fatos, as “fake news” se proliferam pelas mãos de suas plateias. Quer dizer, pelas mídias sociais de seus seguidores. Mas se eles o fazem, o que ganham com isso? Uma coisa é certa, o sucesso de uma “fake news” não depende apenas de quem a cria!

“Tem gente pra tudo nesse mundo e ainda sobra um pra tocar gaita!”, como lembra Jessiê Quirino. Pois é, quem repassa “fake news” é porque GOSTA da mentira. Não que goste exatamente da mentira, mas gosta da “verdade” que a mentira conta. É um nome meio medonho, mas dá para amansá-lo. Chama-se dissonância cognitiva. Como tudo que tem “cog” no início, essa aí se refere a conhecimento e, no caso, ao processo em que cada pessoa constrói seu conhecimento, seus conceitos, suas “re-apresentações” da realidade por meio de linguagens. Uma “re-apresentação” da realidade deve ser sempre verdadeira, deve obedecer à lógica humana, certo? Então se alguém apresenta um conceito (na forma de narrativa por meio de palavras e/ou números, de imagens estáticas (fotografia) ou cinéticas (vídeo)), nos perguntamos se é verdadeira ou não buscando como referência a coisa, a realidade “re-apresentada”. Mas é aí que a porca torce o rabo.

Nessa busca pela verdade, pra saber se algo que nos dizem é verdadeiro, há outros fatores que desviam a “cognição” e assim acontecem dissonâncias. Por exemplo, a emoção, o interesse, o gosto, a empatia, principalmente se a “re-apresentação”, o conceito estiver numa linguagem pouco comum, como o “economês”, o “juridicês”, o “estatiquicês” ou o “cientificês”. Se o tal conceito for apresentado por alguém em quem eu confio, admire ou idolatre, por exemplo, o presidente da República em quem eu confiei, uma pessoa de bata branca e óculos fundo de garrafa que é amigo do amigo, um artista que me cativou etc., serei mais simpático do que, ao contrário, se for apresentado por alguém de quem eu não goste. É assim que os artistas são escalados para fazerem propaganda de remédios que acabam estrias, e técnicos e jogadores da seleção fazem propaganda de cursos EaD. Conta, ainda, o meio pelo qual divulgam seus conceitos. Se aparecer num site simpático como o “Falou e Disse”, tudo bem! Mas, se for na “Globo-lixo”…

Porém (pois é, tem um porém), o mais grave é que na crise de “fake news” e de negacionismo da ciência atual, tem outro fator: a forma e os critérios que usamos para decidir se algo é verdade ou não. Em um mundo que quanto mais coisas a gente conhece, mas tem para conhecer, a fé tende a se tornar mais forte que a razão quando temos de decidir o que é e o que não é verdade. A fé religiosa também, mas falo mesmo é da fé antropológica, aquela necessária para todas as pessoas viverem, inclusive os ateus. Acreditar na palavra do outro, acreditar em conceitos (artísticos, filosóficos, científicos, teológicos ou do senso comum); acreditar no médico, no físico, no biólogo, no matemático, no estatístico, no economista… não é tarefa fácil. Primeiro porque para todos eles e para cada um, sempre há duas ou mais verdades; nenhum diz a verdade absoluta. Quer ver? Pergunte a um biólogo (ou algum profissional que mexe com biologia vegetal ou animal) o que é vida; pergunte a um físico (pode ser um engenheiro) o que é matéria – esqueça aquela definição da educação básica, do tipo “é tudo que ocupa um lugar no espaço”. Pergunte a um matemático o que é número. Pergunte a um administrador o que é uma organização ou a um antropólogo o que é cultura. Diferente do que imagina o senso comum, não é só o filósofo que começa uma resposta dizendo: “depende”… Depois vá no Google. Você verá que nada tem um sentido único, unívoco, invariável. Sim, uma recomendação; “amanse” a palavra “polissemia”, você precisará fazer dela sua companheira.

Diante desse cenário, você verá como a polissemia dos conceitos, os conflitos conceituais entre a física clássica e a física quântica, ou entre as diversas disciplinas científicas se tornam terra fértil para germinar a semente do negacionismo e das “fake news”. Quer dizer, a pseudociência e o negacionismo científico germinam no solo da própria ciência, semeadas por pessoas que ou se recusam a entender porque não gostam, ou não gostam por que não entendem… Tenho duas opções: a) Vou atrás, me aprofundo no tema e faço uma opção a partir da racionalidade; b) Sigo a “minha” moral (valores nos quais acredito, por exemplo, a meritocracia), ou minha fé política (a ideologia que me apraz), ou minha fé religiosa (o deus e, principalmente, as palavras dele nas quais eu acredito) e opto pelo que estiver mais coerente com essas minhas crenças, pelo que me deixa mais confortável.

Claro, assim como Chicó ou Williams, o produtor da “fake news”, o pseudocientista ou o negacionista tem responsabilidade por ela existir. Muitos o fazem porque acreditam em sua própria mentira. Outros pelo interesse financeiro, o interesse pelo poder ou até para simplesmente se tornarem famosos. Mas são os Joãos Grilos que, ao respaldarem e massificarem a distribuição da mentira, garantem sua existência… O que fazer? Não sei, só sei que é assim!

*Alcivam Paulo de Oliveira é professor.