Apartheid de negros e a gestação da morte: o caso de Thiago Duarte

Por

André Alcântara e Paulo Sérgio Pinheiro*

05.05.2021

Na manhã de 8 de abril, o jovem negro Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20 anos, com comprovado retardo mental, foi baleado pelo cabo PM Denis Soares. Thiago faleceu em 20 de abril, após ficar internado no Hospital Geral de São Mateus. Nesse mesmo dia, o juiz José Paulo Camargo Magano acolheu a denúncia feita pelo promotor Osias Daudt e concedeu a prisão domiciliar de Thiago nos seguintes termos: “Ante a gravidade do réu, que se encontra internado em tratamento pelo tiro na face e visando resguardar sua higidez física, defiro que a prisão seja cumprida de forma domiciliar no endereço”.

O que ocorreu de grave nesse caso? A preparação da morte de Thiago pelo Estado.

Desde o momento em que o cabo Denis abordou o jovem – que não ofereceu qualquer resistência à prisão ilegal e recebeu um tiro a queima roupa no rosto – a morte foi gestada. O inquérito policial se reduziu ao depoimento do PM, que tentou justificar seu abuso de força. Faltaram diligências do delegado na produção de provas, como oitiva de outras testemunhas e coleta de imagens de câmeras, o que somente foi solicitado pela Defensoria Pública e autorizado pelo juiz, 12 dias depois do crime – será que as imagens ainda estão lá?

Até o dia da morte de Thiago, constam no processo apenas dois depoimentos de pessoas envolvidas no caso: o cabo que atirou e o jovem negro Fernando Silva, 27 anos, amigo de Thiago, acusado de roubo e preso. Fernando disse que Thiago não estava armado e não reagiu. O cabo Denis alegou legítima defesa à resistência de Thiago. A promotoria acolheu, sem mais, a versão do cabo.

A morte foi o ponto final de uma sucessão de violações de direitos de Thiago, que se estenderam mesmo no hospital. Desde o sábado, 10 de abril, sua mãe, senhora Queli, diarista, e seu pai, o pintor Wilson, tentaram incessantemente visitar o filho no hospital. Mas foram sempre impedidos por suposta gravidade do fato, a partir da narrativa do cabo. Afinal, em 11 de abril, conseguiram uma autorização judicial para a visita, condicionada à autorização do hospital e da escolta militar. Novamente, a visita familiar à Thiago foi negada pelo hospital, sob a justificativa de Thiago estar no andar de pacientes infectados pela Covid-19.

A assistência médica ao preso é dever do Estado, previsto nos artigos 10 e 41 da Lei de Execuções Penais, sendo um direito fundamental previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Mas as informações médicas foram inconstantes e vagas. No hospital, Thiago transitou entre os andares da UTI, das intervenções cirúrgicas e o 3º andar, destinado aos pacientes com Covid-19, conforme informações dadas pelo hospital nas diversas tentativas de visita.

Na guia de encaminhamento do corpo de Thiago emitida pelo hospital ao Instituto Médico Legal (IML), consta erroneamente no campo “Síntese de história clínica e exames complementares de relevância” que “foi uma tentativa de assalto a um policial à paisana no dia 08.04.2021”. Mais uma alegação falsa, para soar como verdadeira: o vício da acusação inicial contra Thiago agravou-se pelo preconceito manifesto da equipe médica, que, em vez de passar informações clínicas, usa dados do fato criminal, já registrado no boletim de ocorrência (BO) e no processo criminal.

A única solução para esclarecer a situação trágica que foi a detenção, a hospitalização e a morte de Thiago seria uma apuração séria, eficaz, que buscasse a verdade real, objeto do processo penal, sem racismo, com juízes e promotores cumprindo seu dever de fiscalização da atuação policial, especialmente no que tange à produção de provas. O próprio Ministério Público (MP) também deveria ter agido como autoridade investigadora, juntando declarações de testemunhas favoráveis à inocência do jovem, conforme noticiado pelos familiares. No entanto, em todo o processo, agiu contrariamente a seu dever, desqualificou a doença mental de Thiago e o manteve preso.

No estado de São Paulo, o risco relativo de uma pessoa negra ser morta em uma ocorrência policial é três vezes maior do que o risco para brancos nas mesmas circunstâncias. Mas não foi o cabo Denis o único responsável pela morte de Thiago. Também compartilham dessa responsabilidade o juiz, o MP e o hospital onde ele esteve internado.

*André Alcântara é advogado, secretário executivo da Comissão Arns.

*Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns, cientista político, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, foi membro e coordenador da Comissão Nacional da Verdade.

Artigo publicado originalmente no portal da Comissão Arns.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.