O Recife sempre atual de Miró da Muribeca e Chico Science
Enildo Luiz Gouveia*
Em 06.05.2021
Quando o discurso acadêmico e formal não consegue adentrar a consciência das pessoas, resta-nos uma alternativa, a arte. A arte, e em especial a poesia escrita e/ou declamada, consegue comunicar às pessoas, as coisas cotidianas sob uma perspectiva criativa, agressiva, sutil e emocionante.
Conheci o João Flávio, ou melhor, o Miró da Muribeca, muitos anos atrás, por ocasião do Encontro de Poetas Recitadores do Cabo de Santo Agostinho. Fiquei encantado com a forma com que ele expressa toda a indignação e amor através das palavras e gestos (muitos gestos). Já o Francisco de Assis, ou melhor, o Chico Science, não tive o prazer de conhecê-lo. Mas, suas canções chegaram pra mim nos idos de 1995 e, desde então, continuam embalando e provocando reflexões.
Interessante notar a relação da obra de Miró e Chico Science com o Recife. A capital pernambucana é sem dúvidas um dos melhores exemplos de cidade que se projeta para o mundo através da sua história, cultura, arquitetura e praias, ao mesmo tempo em que expressa na paisagem a realidade nua e crua do subdesenvolvimento. Um colega que é professor de Geografia Urbana me disse que a maior distância entre um bairro nobre e uma favela no Recife é de apenas 1,2 km. No mesmo espaço onde vivem cerca de 1,7 milhão de habitantes, convivem IDHMs (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) comparados à Noruega,na Europa, e à Serra Leoa, na África.
Ao retratar esta dura realidade da cidade do Recife, Miró diz: “Recife é o sol saindo e o Bandeira Dois anunciando seus mortos… chora a periferia bem de manhãzinha, o café esfria de tanta dor. E o pior é que não adianta chorar o leite derramado”. Uma crítica carregada de indignação e chamado à ação. Noutra genial passagem Miró diz: “Urinei na ponte e inundei a cidade” numa clara referência poética à situação urbana da cidade, onde qualquer chuva mais intensa é sinal de queda de barreiras, alagamentos e inundações.
Chico Science, junto com a Nação Zumbi, retratam as contradições existentes no Recife. Impossível não pensar no Recife ao ouvir:“Ô Josué nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem mais urubu ameaça”. Ou ainda: “Rios, pontes e overdrives, impressionantes esculturas de lama”. A lama, a fome, a violência são temas do cotidiano da cidade. Retratá-las não expressa exatamente uma visão pessimista. Em um dos trechos de A Cidade, temos: “a cidade se encontra prostituída por aqueles que a usaram em busca de saída”. Esta mesma cidade que é “centro das ambições para mendigos ou ricos e outras armações” é a mesma cidade que “não para, a cidade só cresce” em que “o de cima sobe e o de baixo, desce.”
Salve o Recife das contradições e dos carnavais. Salve a genialidade de Miró e Chico Science. Os mesmos versos que cantam a cidade alertam para sua cruel realidade.
*Enildo Luiz Gouveia é professor, poeta, compositor e membro da Academia Cabense de Letras – ACL.
Foto destaque: Catraca Livre