Uma saída pela via da amorosidade

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 18.06.2020

Vivenciamos uma condição planetária em que o esfacelamento dos laços humanos está agravando perigosamente os ímpetos de hostilidade no mundo e reduzindo as possibilidades de reconciliação dos seres humanos entre si e com a natureza. O mais agravante é que estamos nos acostumando com as diversas formas de aniquilamento de vidas, sejam elas humanas ou não, e isso já não nos soa como barbárie, mas apenas como um conteúdo diuturnamente necessário à pauta dos noticiários.

Nessa realidade, a vida tem menor importância porque nós, os seres humanos, estamos mergulhando, cada vez mais, num mar de banalidades e somos tomados pelas ondas de um consumismo voraz, que não poupa aniquilar aqueles que não se curvam ao cartão de crédito e às tendências impostas pelos modismos.

Vivemos mais intensamente uma época em que a valoração do ter chega ao ápice para justificar a boa vida. Tempos em que os valores morais se curvam a uma ética do mercado, em que o lucro e a ganância são solenemente argumentos para afirmação do ser. Para o pensador francês Gabriel Marcel, o ter é a coisificação do ser, é tudo que é objetivável. De tal maneira, estamos vivendo um tempo em que a desconstrução daquilo que é mais humano no ser humano torna-se uma condição para evitar a nossa invisibilidade social. É preciso sair da lixeira e voltar às vitrines e a única forma de ser notado é através do consumo. É preciso voltar às prateleiras para ser admirado. Isso porque, cada vez mais, acentua-se a funesta lógica do “vale quanto pesa”.

Em contrapartida, afrouxamos os laços que ainda nos mantém integrados, que nos unem pelo sentimento de afeto, carinho e amorosidade. Perdemos, desse modo, as nossas potencialidades existenciais de comunicação autêntica com as outras pessoas; as nossas possibilidades de alteridade, que só têm valor quando envolvem profundamente o outro.

Com isso, passamos a ser depositários da angústia, da depressão, do desespero. De acordo com relatório (2017) da Organização Mundial de Saúde – OMS, em 2030 a depressão será a doença mais comum em todo o mundo. Para esse órgão, cerca de 2% a 4% da população mundial, ou seja, milhões de pessoas sofrem de Síndrome do Pânico. A depressão já é considerada por especialistas a doença do século, mas esses mesmos especialistas afirmam que nem sempre se sabe o fator que causa essas crises. Como é possível isso?! Que tempos estamos vivendo? Chegamos a uma condição em que ter pânico de conviver com o nosso semelhante já é uma banalidade e ainda não conseguimos enxergar a causa dessa situação?

A ostentação da “vida boa” alicerçada no ter está degenerando a dimensão do ser e alargando a esfera que nos separa dos sentimentos mais humanos que nos habita. Com isso, estamos perdendo a nossa condição humana que se afirma existencialmente pela presença. E presença humana é marcada pela relação dialógica com o outro. É essencialmente pelo diálogo que marcamos a nossa presença no mundo e com o mundo. Martin Buber afirma que é na relação EU-TU que os seres humanos se encontram, que realizam a sua existência, que se situam no mundo com os outros e se introduzem na sua própria existência. Para ele a própria condição humana de existência é privada de presença quando não se estabelece pela relação EU-TU.

Dessa forma, a convivência humana adoece quando perdemos em nossa relação a presença do outro. Pois, a partir daí, já não temos mais uma relação marcada pela palavra-princípio EU-TU. Temos, então, o princípio da dominação e da coisificação do outro, que é marcada pela relação EU-ISSO, quando o outro ser passa a ter valor meramente utilitário, como se fosse um objeto, uma coisa. A desqualificação do ser humano ocorre quando ele é impedido de realizar-se em suas dimensões ontológicas e existenciais. Daí, então, passa-se a ter uma relação marcada pela verticalização, pela imposição de um sobre o outro, pelo estabelecimento da coisificação do ser.

Não é demais dizer que o modelo de sociedade, no qual estamos inseridos, alimenta nas pessoas uma busca desenfreada pela felicidade, mas essa felicidade está pautada em princípios utilitaristas, nos quais não cabem as dimensões mais humanas do afeto e da alteridade, pois esses princípios são regidos pela incansável necessidade de produzir e de consumir o que se produz. Em outras palavras, nessa sociedade neoliberal de desempenho, quem não produz e não consome não alcança a felicidade.

Uma das consequências desse modelo de sociedade é a sua capacidade de gerar esgotamentos físicos e emocionais que vão adoecendo a alma e o coração das pessoas. Esses adoecimentos vão minando as convivências e individualizando os sujeitos, pois para sobreviver nessa selva aonde a ética não se edifica, é necessário ativar a bússola que orienta para o caminho do “cada um por si”. Esse é o espaço fértil para acender nas pessoas o narcisismo, que passa a reger os comportamentos e atitudes, na medida em que cada um passa a crer na sua autossuficiência e, por conseguinte, passa a enxergar apenas a si mesmo.

O mais comprometedor desse comportamento narcísico é que as pessoas deixam de enxergar as outras pessoas. Passam a ver somente a si mesmas. E quando o ser humano se encontra nessa condição, perde todos os referenciais externos a si. Fecha-se em si mesmo. E esse ver-se apenas a si mesmo é uma maneira mórbida de se enxergar, de se olhar, de se compreender, de se narrar e de se julgar. Perdem a noção de coletivo, pois já não veem mais os outros. Esse fechamento em si mesmo é uma forma doentia que geralmente leva a adoecimentos da alma, como a depressão. Portanto, não vejo saída para uma existência sadia do ser humano fora do diálogo, da convivência ética, da solidariedade e do amor. Uma condição em que o ser humano não seja apenas mais um número nas estatísticas e que não ocupe no mercado os espaços destinados aos produtos e mercadorias.

BUBER, Martin. Eu e tu. São Paulo, Centauro, 2001

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quintas-feiras.

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