Xikão Xukuru, o líder que o Brasil teve que respeitar

Por

Andréa Galvão*

Em 22.05.2021

Eu o vi pela primeira vez há mais de 30 anos. Voz de timbre agradável, olhos claros, cabelos nos ombros e uma altivez que só os resilientes possuem. Assim era Francisco de Assis de Araújo, nascido em Cana Brava, uma das aldeias do povo Xukuru, em Pesqueira, no ano de 1950, filho dos estimados vizinhos Cícero Pereira e Quitéria Araújo.

Nos idos de 1986 a figura do líder já se desenhava e todos o conheciam por Chicão, o Xikão Xukuru, como se escreve na língua materna. Escolhido por seu povo para ser cacique, ele exercia um protagonismo jamais visto na luta pelos direitos indígenas. Nos bastidores, era muito tratável! Pai zeloso, filho dedicado e irmão cheio de carinho.

Seria muito mais cômodo sucumbir ao conformismo e aceitar com normalidade a expropriação. Curvar-se às ameaças, às injustiças. Mas, Não! Sem arco e flechas, munido apenas de um discurso certeiro com toda eloquência que lhe era peculiar, ele foi ganhando espaço e passou a cobrar das autoridades um posicionamento sobre a demarcação das terras. O contexto da época era favorável para tal, porque estávamos experimentando uma reabertura política após anos de ditadura e a promulgação da nova Carta Magna era uma realidade. Promulgada em 1988, a Constituição trazia um destaque no artigo 231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam.

Era o que faltava! A batalha pela retomada agora tinha respaldo legal e o cacique marchou para a frente. Muitos passos foram dados e num deles, no dia 20 de maio de 1988, Xikão foi brutalmente assassinado a tiros quando descia de um carro pertencente à tribo Xucuru, na esquina da Rua Coronel Leonardo, no bairro dos Xukuru, onde iria visitar uma neta que acabara de nascer. Tristeza de familiares, amigos, indígenas e simpatizantes da causa, como eu.

A morte não apaga legados! Marcos Luidson, o seu filho, herdou a coragem e o cocar, e, com a força encantada, prosseguiu no intuito de libertar o povo Xukuru da exploração sofrida durante séculos. Mesmo estando mergulhado num mar de conflitos, a vitória chegou e as terras foram retomadas no ano 2000. Era o fim da sofrida batalha, da subvida que muitos caboclos experimentaram, inclusive os meus familiares. Os que migraram para a cidade de Pesqueira e os que sofreram para que não cortassem suas raízes, muito bem fincadas na Serra do Ororubá.

Marcha de 2019 – Reprodução de vídeo da Ororubá Filmes

Foi por eles que me engajei e todo dia 20 de maio estou nas ruas, imersa numa manifestação legítima e alusiva à bravura de um homem que só queria ver o seu povo livre. Em cada canto entoado, em cada batida dos meus pés no transe do Toré, eu vou rememorando as histórias do meu querido PAI, que orgulhosamente me transmitiu os costumes dos seus e meus antepassados e que hoje já estão bem guardadas. As mesmas provavelmente iriam se perder se Xikão Xukuru não tivesse se doado a ponto de perder a própria vida, eternizando-se por ser RESISTÊNCIA!!

*Andréa Galvão é professora de Língua Portuguesa e Arte no Colégio Santa Dorotéia, revisora ortográfica e redatora. É membro da Sociedade dos Poetas e Escritores de Pesqueira e da Academia Pesqueirense de Letras e Artes.

Foto destaque: Blog Livre Opinião

Nota do editor: A manifestação do dia 20 maio ocorre desde 2000. É o ponto culminante da Assembleia Xukuru, que se inicia três dias antes, no dia 17, na Aldeia Pedra D’água, na Serra do Ororubá. Participam pessoas de todo o país (estudantes, universitários, representantes de ONGs, jornalistas e povos indígenas).  No dia 20 os participantes descem a Serra do Ororubá entoando cânticos e dançando o toré. A marcha, um percurso de cerca de quatro km, se encerra no local onde o Cacique Xikão foi assassinado. A manifestação é marcada por rituais e discursos que ressaltam a luta do povo Xukuru. Desde o ano passado a Assembleia Xukuru é realizada em forma de live, em razão da pandemia do novo coronavírus.