Reconexão ancestral
Larissa Amorim Borges, Lorena Amorim Borges e Laiara Amorim Borges*
Em 27.05.2021
Olá, minha tataraneta!
Há tempos penso em te escrever. Há tempos intuí de deixar registrado para você meus sentimentos e palavras porque no fundo da minha alma há um desejo ardente de compartilhar com você e de estar presente em sua vida.
Gostaria muito que você sentisse, nesse exato momento, que em algum lugar da (re)existência há uma ancestral que te antecedeu, e que desde sempre sonhou e te amou. E desejou para você grandes conquistas e realizações de uma vida leve com facilidade, alegria e glória. Uma vida com gozo e plenitude.
Desejo que você sinta e saiba que exatamente aqui, agora, nesse lugar em que nós juntas fazemos uma ruptura no tempo e no espaço para nos encontrar e para nos reconectar ancestralmente, as memórias e esperanças do nosso povo se renovam, se reconfiguram e renascem potencializadas.
Como os cabelos que se entrelaçam em lindos dreads que sequer imaginam a dor e o suplício da possibilidade de serem alisados, escrevo essa carta porque ela é uma forma insurgente de romper as barreiras de tempo e espaço impostas às gerações passadas pela branquitude e suas práticas epistemicídas.
Te escrevo, minha querida, para que você sinta e saiba que tem o pleno direito de viver e de sonhar os seus sonhos, de criar as mais diversas perspectivas. Que você tem o direito de não ser submetida a exigências externas e, tampouco compelida a expectativas alienadas e alienantes de quem quer que seja.
Escrevo essa carta para que você saiba, lembre e confirme que, desde os nossos ancestrais, aqueles que vieram muito antes de mim, você tem pleno direito de contar sua própria história, direito e possibilidade de resgatar a nossa história. Tem pleno direito, possibilidade e condições de criar todas as histórias que você quiser criar, viver e contar.
Assim como minha tataravó me enviou mensagens e transmitiu sua sabedoria e força, transmito a você todo meu amor, sabedoria e poder.
Nossa linhagem é composta por muitos e muitas, de diferentes tons de luta e com variadas intensidades de vida. Minha Tataravó Lia era uma mulher indígena que, por amor, decidiu viver em um quilombo e lá nasceu parte importante da nossa família. Pessoas com a pele da cor da terra fértil do norte de Minas e enraizadas na luta pela sobrevivência. Na verdade, viemos de antes e de muito além, mas na região do Mocambo banhada pelo Rio Trinta, nossas raízes se fortaleceram construindo casas de pau-a-pique com as próprias mãos, plantando vida e colhendo sonhos.
A minha filha cruza as perninhas como a minha avó, dança como minha mãe e sorri como eu. Fico imaginando como cada uma de nós estará presente nos seus gestos, movimentos, em seu sorriso, na cor da sua pele, na textura dos seus cabelos, nos seus posicionamentos políticos e no seu desejo e determinação de voar.
Herdeira desta história, você, minha querida, nasceu para viver e exercer suas potencialidades sem barreiras, sem impedimentos, livre de opressões, de estigmas e estereótipos. Aliás, você nem deve conhecer essas palavras que a essa altura, muito possivelmente, já caíram em desuso.
No tempo em que eu vivo, há maravilhas e absurdos impensados pelos nossos ancestrais e também pelas gerações futuras, e alguns deles só fazem sentido aqui onde estão; não são e não devem ser nem exemplo e nem herança.
Durante muito tempo, nosso povo viveu em plenitude desenvolvendo sua arte, ciência e tecnologia com liberdade e propósito no Kemet e em todo o território africano. Inventamos a palavra falada e a palavra escrita. Inventamos o próprio pensamento e a condição humana. Inventamos a ciência, matemática, metalurgia, medicina e a agricultura. Foram tantas criações, de tamanha beleza e complexidade! É gratificante pensar sobre cada uma delas e eu espero sinceramente que você sinta e saiba que é parte e continuidade de todo esse saber e riqueza que foi produzido por nós e pelos nossos, ao longo da história.
Nosso povo viveu tempos de glória, mas também (re)existiu em tempos de violência e dor. Durante um certo período daquilo que aqui chamamos de história, parte das pessoas viventes no planeta decidiram estabelecer hierarquias para aplacar seu sentimento de inferioridade. Tal tentativa desesperada gerou muita dor, violência e morte. Tudo o que é vivo neste planeta sofreu as consequências das ações daqueles e daquelas que se sabiam tão inferiores que desejavam dominar e destruir os demais. Como consequência dos pensamentos e práticas e modos de viver embranquecidos, o planeta quase deixou de existir.
Felizmente, o nosso povo, que sempre teve inteligência e sagacidade, seguiu recriando-se, com cuidado e paciência. Individual e coletivamente, nosso povo foi afirmando sua dignidade, apesar de todas as formas e tentativas de exploração frente às quais resistiu.
Mesmo em meio a condições profundamente adversas e violentas, nosso povo criou coisas incríveis, profundas, sensíveis e fortes, como o blues, um canto de trabalho, vindo das colheitas de algodão e o samba, um canto em roda, uma oração coletiva e em movimento. Criamos também cirurgias que possibilitam o nascimento de crianças que não conseguiam chegar ao mundo por parto normal, e, também o transplante de coração. Criamos um supercomputador e várias outras coisas.
Nos tempos em que a humanidade se viu sendo dizimada por uma pandemia, ocasionada por um vírus letal que se espalhava pelo ar e por meio do contato muito próximo entre as pessoas, algo muito significativo voltou a acontecer.
Nosso povo, que em diferentes momentos vencera as mais cruéis tentativas de subjugação, tortura e extermínio, sensível ao que ocorria consigo e com os demais, direcionou sua inteligência para planejar e desenvolver ações solidárias e, ao mesmo tempo, emancipatórias.
Mobilizado em uma Coalizão Negra, o nosso povo realizou ações que renovaram a dinâmica de organização negra e alimentou o corpo, a alma e o sonho de milhares de pessoas, que nutridas em suas esperanças, puderam reconhecer suas potências e criaram formas de desconstruir as bases que estruturaram aquilo que chamávamos de modernidade.
Todas as relações sociais que compunham o mercado, o mundo público e o mundo privado estavam estruturadas no racismo, um sistema de poder com várias formas de expressão, que foi destruído pela ação dos Movimentos Negros de todo o planeta.
Minha querida tataraneta, escrevo agora para que possamos nos conectar. Talvez, quando esta carta te alcançar, já seja possível que a nossa conexão também se dê de outros modos. E isso trará muita alegria para todas nós.
Escrevo essa carta agora porque talvez aí, no futuro, você também viva situações como as vividas pelos nossos ancestrais e a minha própria geração. Situações aparentemente imutáveis ou intransponíveis, mas lembre-se: só aparentemente. Em algum momento, tudo aquilo que pareceu impossível foi possibilitado pela nossa resistência, pela nossa sensibilidade, pela nossa arte, pela nossa luta, pela nossa ancestralidade. Tudo o que não existe pode ser inventado!
Houve um tempo em que a colonização parecia natural e infindável e nós finalizamos a escravidão colonialista em todo o planeta. Passamos por uma grande pandemia e sobrevivemos a ela com a solidariedade entre nós. Tempos depois, eliminamos/superamos também o racismo e seus impactos, o que colocou todo o planeta em outro rumo, em um outro paradigma de existência e desenvolvimento.
Talvez, no seu tempo, já haja um antídoto para reparar os danos que o epistemicídio nos causou. Se assim for, você terá acesso a histórias e memórias profundas e potentes. Desejo que nessa hora você tenha a sabedoria de concentrar sua atenção naquilo que realmente importa e reconheça em cada dor a sua/nossa capacidade de reinvenção e resistência. Espero que você tenha sabedoria para se demorar ouvindo sambas, dançando, jogando capoeira, firmando os pontos dos Orixás.
Nos tempos remotos, nossos ancestrais ergueram pirâmides que demonstravam sua precisão técnica e seu desenvolvimento científico e tecnológico. Também demonstravam sua reverência e conexão com as forças da espiritualidade e da natureza. Tais símbolos expressavam na verdade a importância das pessoas negras e o respeito com a vida e a morte.
Minha querida tataraneta, talvez você já saiba e já sinta que a principal e mais importante tarefa política e missão ancestral que você recebe de nós como herança seja o direito de se amar. A capacidade e a habilidade de se priorizar é saber e sentir que as vidas negras importam, são sagradas e devem ser reverenciadas como o sol, em cada respiração.
Escrevo essas palavras para que você, no futuro, em seu tempo, para que se também se sinta parte dessa vitória, se saiba parte da construção de um projeto de sociedade diferente e melhor do que tudo o que a humanidade havia vivido até então.
Me orgulho muito de você. Confio em você. Eu te vejo e te sinto e tenho a certeza de que você seguirá seu próprio caminho, do seu jeito. Com isso, estará honrando e preservando o legado de todas nós.
Você tem o direito e as condições necessárias para ser tudo o que você quiser. Respire tranquila! E que os Orixás, Inkices, Voduns e todos os encantados te abençoem!
*Larissa Amorim Borges – Graduada em Psicologia pela PUC São Gabriel. Doutoranda e Mestre em Psicologia pela UFMG. Gestora de Políticas Públicas de juventude, Gênero e Raça com experiência nos níveis municipal, estadual e federal. Colaboradora na criação e desenvolvimento da disciplina Psicologia Social do Racismo no curso de Psicologia da UFMG. Liderou a elaboração do Plano Decenal de Políticas para Mulheres do Estado de Minas Gerais. Integra a atual gestão do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG).
*Lorena Amorim Borges – Natural de BH, mulher negra periférica mãe de 3 meninos negros, Bacharel em Direito, coach de desenvolvimento pessoal afrocentrado, candomblecista filha de Yemanjá. Ativista pela igualdade racial, Direitos humanos e desencarceramento; Defensora Popular formada pela Defensoria Pública de MG em 2017, Coordenadora cultural e de eventos Integrante do coletivo Juventude de Terreiro Cenarab MG, líder acelerada do programa Marielle Franco.
*Laiara Amorim Borges -Belo Horizonte. Mulher negra mineira, oriunda de favela; Graduanda em Ciências Aeronáuticas, Pilota em formação. Comissária de voo atuante há 7 anos, Gestora da página @voe_como_uma_garota_negra, selecionada pelo clube de blogueiras negras edição 3, Membro do Comitê de Tripulantes negros do SNA; Cofundadora do Quilombo Aéreo e líder acelerada do Programa de aceleração de lideranças femininas negras: Marielle Franco, coordenado pelo Fundo Baobá.
Artigo publicado originalmente no portal Geledés.
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