A importância da Convenção Interamericana contra o Racismo

Por

João Pedro Gindro BrazLuiz e Antonio de Britto Junior*

Em 31.05.2021

Em meio a um já tumultuado ano pandêmico, o assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020, fez com que a questão do racismo reacendesse com muita força no debate público mundial. Por nove minutos e 29 segundos, um policial branco manteve seu joelho sobre o pescoço de Floyd, durante uma abordagem desastrosa que resultou em sua morte.

Uma onda de protestos em massa espalhou-se dos Estados Unidos para o mundo, sob o lema “Vidas Negras Importam” (Black Lives Matter), escancarando a triste realidade de que o preconceito e a discriminação de indivíduos e grupos com base em suas características biológicas e étnicas ainda está muito presente nas ações de Estados e de seus agentes.

Mais do que um problema comportamental, em vista de tais acontecimentos é possível afirmar que o racismo é um sistema de dominação e subjugação social, que também se manifesta no campo institucional, seja ele público ou privado, e que ao longo da história já teve “sofisticadas” justificativas teóricas para ser praticado.

A ideia de que alguns nascem para serem dominados e reduzidos à servidão, que superiores devem governar inferiores, está presente, por exemplo, no Livro I da “Política” de Aristóteles e no diálogo platônico “Górgias”. No século 19, auge do imperialismo colonial, o racismo revestiu-se de ares pseudocientíficos, quando médicos, antropólogos e outros estudiosos tomaram a teoria darwinista da seleção natural e evolução das espécies para justificar “cientificamente” a existência de uma “hierarquia racial” de civilizações.

Esse movimento atinge seu ápice no século 20, momento em que tais ideias e doutrinas orientaram políticas de Estado, tais como as “leis Jim Crow”, que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos, a política do Apartheid, na África do Sul, e, sobretudo, no horror do Holocausto nazista.

Contudo, no Brasil, as questões raciais ainda são pouco encaradas, apesar de estarem na raiz das principais mazelas que nos afligem. Em boa parte de nossa história, nosso desenvolvimento econômico esteve ancorado na utilização da mão-de-obra de grupos que foram desumanizados e reduzidos à condição de propriedade, por serem considerados “inferiores”.

Da escravização de indígenas, tidos como “imprestáveis para o trabalho”, passou-se à escravidão de negros africanos, que, tornados em “elemento servil” entre 1532 e 1888, foram relegados à marginalização e exclusão após a abolição da escravatura, uma vez que esse processo foi totalmente desprovido de uma política de integração destes à sociedade brasileira, o que explica o fato de que, até hoje, os mais baixos indicadores sociais no Brasil sejam verificados entre nossa população negra.

Com o advento da República, o governo brasileiro passou a apostar numa política de “branqueamento” social, promovendo a imigração de europeus para trabalharem em nossas lavouras de café. Italianos, alemães, poloneses e outros foram atraídos com a promessa de uma vida melhor, mas o que encontraram foram condições de trabalho análogas à escravidão e discriminação por suas origens.

Ainda, fato pouco conhecido é a utilização de campos de concentração pelo governo brasileiro na primeira metade do século 20. Entre 1915 e 1932, sete campos de concentração foram construídos no Ceará para contenção de retirantes que fugiam das secas rumo ao Sudeste. Nos anos 40, vários campos foram criados pelo país para o aprisionamento de cidadãos de origem japonesa, italiana e alemã, onde eram separados de seus filhos, hostilizados e humilhados, obrigados a trabalhos forçados, sob a justificativa de que eram suspeitos de serem colaboradores das forças do Eixo.

Como se vê, a discriminação racial permeia nossa história e a formação de nossa sociedade, circunstância essa que nos obriga não somente à adoção de políticas públicas que enfrentem tais questões, mas um ordenamento jurídico munido de princípios e regras que nos forneçam os instrumentos necessários para lidarmos juridicamente com tais problemas.

Nesse sentido, no último dia 13 foi ratificada pelo presidente da República a Convenção Interamericana contra o Racismo, de modo que o Brasil assume o compromisso internacional de prevenir, eliminar, proibir e punir atos e manifestações de racismo, discriminação racial e intolerância.

Segundo o texto convencional, a discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica e pode ocorrer a partir de “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, com o propósito ou efeito de anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados partes”.

Outrossim, de acordo com o artigo 1.1 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, documento que norteia a atuação de seus Estados-membros, da qual o Brasil é parte (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992), os Estados assumem o dever de respeitar direitos e liberdades e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, o que denota obrigações, respectivamente, de caráter negativo (respeitar) e positivo (garantir).

Assim, o Brasil, por ser signatário da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos não deve apenas se abster ou não perpetrar atitudes e comportamentos discriminatórios ou ser conivente a eles — seja na relação vertical entre Estado e indivíduo, seja horizontalmente nas relações entre indivíduos — , mas garantir mediante políticas públicas e medidas legislativas ou de outra natureza a prevenção, eliminação, proibição e punição a atos e manifestações de racismo, discriminação racial e intolerância.

A grande batalha pela proteção dos direitos humanos é ganha no âmbito interno, do qual é coadjuvante ou complementar, não substituto, o âmbito internacional, de modo que, com a internalização da Convenção Interamericana contra o Racismo cabe ao Brasil prevenir e sancionar práticas de discriminação racial baseadas em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica. Sendo assim, não pode o Estado brasileiro invocar disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento do texto convencional ratificado, já que todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé, salvo se mais benéfica à pessoa humana (princípio pro persona).

A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância ganhou o status equivalente ao de emenda constitucional, uma vez que foi votada e aprovada em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por maioria de três quintos dos votos dos respectivos membros, nos termos do §3º do artigo 5º da Constituição Federal.

Dessa forma, a Convenção Interamericana contra o Racismo passa a ser o quarto tratado internacional de direitos humanos aprovado com status equivalente ao de emenda constitucional, somando-se à Convenção da ONU sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, ao Protocolo Adicional à Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência e ao Tratado de Marrakesh, todos aprovados pelo rito do artigo 5º, 3º, de nossa Carta Maior.

Embora o Brasil (e o mundo) ainda tenha um longo caminho a trilhar em termos de promover e assegurar de forma efetiva a igualdade entre todos, de modo que episódios trágicos como o de George Floyd e de outros tantos que ocorrem em solo brasileiro jamais se repitam, a ratificação da Convenção Interamericana contra o Racismo nos dá uma importante ferramenta jurídica a ser empregada tanto na árdua luta contra racismo em nossa sociedade, como na reforma do Estado brasileiro, tão marcado pelo descaso para com seus cidadãos.

*João Pedro Gindro Braz é mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina, especialista em Direito Civil e Processual Civil e Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente/SP, estagiário docente do Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente/SP e advogado.

*Luiz Antonio de Britto Junior é especializando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), professor de Direito Constitucional e Filosofia do Direito do Sistema de Questões do Estratégia Concursos e advogado.

Artigo publicado originalmente no portal da Revista Consultor Jurídico.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

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