O Jacarezinho que existe em cada um de nós
Claudinéli Moreira Ramos*
Em 08.06.2021
Quando uma chacina como a de Jacarezinho acontece, não tem como não mexer com todo tipo de brasileiro, em todo lugar. Todo mundo fica um pouco movido. Foram 28 mortos. Mesmo num país onde se morre tanto por causa da violência, não é todo dia que a segurança pública entra em uma favela e sai de lá carregando 28 cadáveres.
Uma autoridade disse que era tudo bandido e muita gente fez coro: “a polícia fez bem de matar”. Tudo bandido? Bom, parece que se viu de imediato que nem todos eram. No mínimo, porque um policial morreu também (vou resistir a entrar na discussão sobre bandidagem na polícia e vou dar ao servidor morto o benefício da inocência como princípio – algo que muita gente negou aos demais executados). Além do policial, comprovou-se que nem todos os mortos tinham ficha criminal ou passagem pela polícia. Isso é garantia de que eram inocentes? Não necessariamente. Tanto quanto ter passagem ou ficha não significa necessariamente que eram culpados – significa?
Mesmo assim, vamos embarcar nessa justificativa. Vamos assumir, por hipótese, que eram todos bandidos mesmo. Todos culpados de algum crime. Então a polícia fez bem de matar?
Antes de concordar ou discordar, vale a pena pensar na consequência desse entendimento: “se a pessoa é um bandido, a polícia pode ir até ela e por fim à sua vida”.
Alguém dirá que essas mortes só aconteceram porque os atingidos revidaram, recebendo a operação à bala. É verdade que houve tiroteio, mas há também fartas evidências de que nem todos aqueles homens mortos estavam armados e reagiram. E aqui cabe perguntar: por que a polícia rapidinho tirou os corpos do lugar? Se a indicação exata de cada corpo com arma na mão – mais as perícias dessas armas – ajudaria a mostrar que a polícia só se defendeu, por que cargas d’água as cenas de crime foram rapidamente desmontadas e os corpos carregados pelos próprios policiais, impedindo que se pudesse provar a boa conduta policial?
Ontem, esse episódio lamentável completou um mês sem grandes repercussões. Seguimos com mais perguntas do que respostas em relação ao caso do Jacarezinho. Sabemos só que não há como afirmar que os 27 mortos estavam atirando na polícia. Ao desmontar as cenas do tiroteio, ela própria impediu que a tese da legítima defesa pudesse ser comprovada. Mas vamos voltar à justificativa de que, sendo tudo bandido, a polícia fez bem de matar, já que muita gente realmente acredita que, se a pessoa é bandida, ela pode ser executada, mesmo que não esteja atirando. A ideia seria de que eliminar aquele mal elemento tornaria a comunidade local e a sociedade em geral mais “segura”.
Para quem pensa assim, quero perguntar: isso vale só para bandido pobre e favelado ou vale para todo tipo de bandido? Supondo que a resposta seja de que deveria valer para todos, afinal isso seria condição para garantir a segurança pretendida, vou insistir: então, deveria valer para bandido rico também? Para bandido branco, rico e que mora em condomínio de luxo?
Espera! Não responde ainda: vamos colocar nomes nessa suposição toda. Nesse caso, a polícia poderia matar o ex-presidente Lula, certo? Afinal, muita gente tem convicção de que ele é bandido. Poderia matar também ao menos dois filhos do atual presidente, já que existem provas de rachadinhas e superfaturamento, entre outros ilícitos. Aliás, com base nas recentes denúncias nacionais e internacionais, o próprio presidente Bolsonaro poderia ser executado pelas autoridades policiais por crimes diversos, inclusive genocídio, correto?
Na mesma lógica, poderia ser exterminada uma parcela enorme de outros membros dos poderes executivo, legislativo e judiciário – alguns envolvidos em roubo de dinheiro, outros inclusive no tráfico… Afinal, a gente não pode esquecer que a favela não planta maconha nem produz cocaína; essas drogas vêm de algum lugar e há muita gente graúda que ganha fortunas nesse negócio.
Mas espera mais: se há produção e tráfico, é porque há consumo. Será que os usuários não deveriam ser executados também? Aumentaria a segurança… Talvez aquele garoto estranho que mora no final da sua rua? De repente aquele seu sobrinho…?
Aí começa a complicar, né?! Vamos ficar só com os criminosos pesados. Mas quem decide quais são? Por exemplo, milicianos são criminosos. Mas também são policiais. E agora? Pode matar ou não pode?
Espera, espera… A gente sabe que a corrupção na política tem como um efeito perverso a morte. O dinheiro que eles desviam da saúde, por exemplo, impede que vidas sejam salvas. Condena inocentes à morte. Acho que todo mundo vai concordar que esse é um crime pesado. Seguindo a lógica do “bandido bom é bandido morto”, autoridades e servidores públicos envolvidos seriam bandidos e poderiam ser assassinados, né?! Mas e o empresário que faz parte do esquema? E o laranja que aceita ser usado para disfarçar esse crime em troca de uns trocados? Ou o policial que dá cobertura? E a quantidade enorme de pessoas – outros funcionários públicos, outros empresários e policiais… – que veem os crimes acontecerem e não denunciam?
Está ficando mais complicado? Pois é bom pensar direitinho a respeito. Porque aplaudir execução de pobre na favela é bem fácil. É fácil negar o direito de defesa a quem só teve o crime organizado como proteção ou a quem nem do crime fazia parte, apesar de conviver numa região governada pelo tráfico e pela ausência do estado.
A pessoa que diz que bandido bom é bandido morto até mesmo sem prova de que aquele morto era bandido, e prefere ignorar acusações e provas contra pessoas que ela admira, no fundo não acha que bandido bom é bandido morto. Ela só acha que pobre tem mais é que morrer. Não por “maldade”; não todos (!), mas aqueles que “podem” representar um “perigo”…
Aí a gente começa a entender porque mais de 470 mil mortes que não precisavam ter acontecido não sensibilizam esse tipo de pessoa. Você não acha genocídio um crime quando você mesmo mataria de propósito uma porção imensa da população só porque a existência dela te deixa “inseguro”.
Quando disse que a vacinação podia transformar as pessoas em jacaré, o atual presidente do Brasil esqueceu de dizer que seu governo pretendia transformar o país em campo de extermínio de jacarezinhos. Por mais atordoante que seja, muita gente vê nisso a esperança de um “Brasil de bem”.
Mais que nunca precisamos estar sensíveis e atuantes em relação a essa face apavorada, que consegue ser tão perversa e desumanizadora, da cultura nacional. Não avançaremos no respeito à diversidade humana e na redução das desigualdades sociais sem lidar com ela.
*Claudinéli Moreira Ramos é historiadora, mestre em Filosofia da Educação e doutoranda em Cultura e Informação pela USP. Especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona e Observatório Itaú Cultural, é professora universitária e consultora em gestão e políticas culturais.
Artigo publicado originalmente no portal Geledés.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: geledes.org.br