Estrelas além da Ciência, da Arte e do Racismo, claro
Sirlene Vanessa de Souza Assis e Gilmar Bittencourt Santos Silva*
Em 10.06.21
Estrelas além do tempo é um filme lançado em 2016, mas, que se reporta ao ano de 1961, em plena Guerra Fria (1947-1991), período em que existia uma disputa entre EUA e URSS pela a sua supremacia militar e na corrida espacial. Ao mesmo tempo um desses países, os Estados Unidos, confrontava-se internamente com o racismo dos brancos contra a minoria negra.
O filme demonstra a maneira que as mulheres negras trabalhavam na NASA, sem ter reconhecimento, apesar de sua enorme capacidade e criatividade para o aperfeicoamento do Programa Espacial.
Numa das cenas do filme, Katherine Johnson, interpretada por (Taraji P. Henson), encontrou a solução de um problema no projeto que usava o que era mais moderno da tecnologia da época, mas cuja solução se utiliza do raciocínio de matemática da antiguidade, utilizando seus conhecimentos de História da Matemática, que por sinal é Fenícia, Egípcia, Chinesa, Árabe e Hindu, antes de ser grega.
Retornamos para o ano de 2020, não que assim desejemos, porém, é lá que está um filme que teve indicação ao Oscar, “A voz suprema do Blues”. Este filme se dedica a mostrar o processo de exploração da Arte dos homens e mulheres negros e negras pela indústria de entretenimento nos Estados Unidos.
A protagonista, (Ma Rainey), por Viola Davis, explicita em sua fala que somente a tratam bem por tirar sua voz, depois de extraída não convidam a casa, e somente pedem para que ela cante para os convidados.
Enquanto em estrelas além do tempo, (Hidden Figures), a música as vezes era festiva, nos convidando a uma revolta branda. A voz suprema da música triste foi até categorizada pela protagonista que de tanto viver sem voz, ela precisava romper o silêncio pelo blues. A música não alegra a cantora, pois é melancólica e trata-se da tradução da sua dor e de um povo.
A voz suprema do Blues é um filme breve, dinâmico e de violência explicita, ao contrário de Hiddens Figures, que foi arrastado, explicado e cuja violência está sempre subentendida. Nos dois filmes se evidência a maneira em que as duas indústrias mais poderosas dos Estados Unidos foram beneficiadas pela genialidade do povo negro.
A matemática retratada no filme de 2016 trabalhou em inúmeros projetos da NASA, além de ser autora ou coatora de mais de vinte estudos científicos, contudo, somente em 2015 teve seu trabalho reconhecido, com a Medalha da Liberdade, homenagem prestada pelo então Presidente Barack Obama condecoração mais importante do país(creio que caberia aqui, um pro final apenas), o então presidente americano.
Quando em particular se defende uma união plural de sociedade no Direito (pluralismo de ordens jurídicas), não se desconsidera o paradigma dos direitos fundamentais, porém, agrega-se a este, uma visão diatropica de colaboração das comunidades do que é o direito e diálogo, com esta pela inclusão de pautas raciais e de gênero, nos seios dessas comunidades.
Pode -se complementar a visão dos direitos humanos em todos os lugares, o que não pode é ficar sem direitos.
Por outro lado, se fala de coração sobre a Democracia neste país, e defesas de ambiente sustentável, nada disso é possível sem a integração das pessoas negras, inclusive no processo decisório.
A nossa Câmara dos Deputados criou uma Comissão para os juristas revisarem as leis, a fim de mudar a situação racial. Esta comissão é composta por vinte juristas convidados pela Câmara dos Deputados e tem como finalidade revisar a legislação para enfrentamento do racismo, deve ter suas contribuições consideradas, porém, se trata de um passo inicial.
As cotas também têm sido um instrumento potente para reverter este processo, mas tudo isso ainda é insuficiente para mudar o quadro que está pintado.
Para o reconhecimento e suporte da luta dos negros e negras só puderam contar e só contam entre si com eles e elas, neste sentido, as duas histórias contadas no cinema são tão violentas quantos as nossas vidas reais e para mudar isso é preciso reconhecer desde já as contribuições das mulheres nas Ciências e nas Artes.
A Defensoria Pública do Estado da Bahia homenageou a renomada pesquisadora Telma Lisboa do Nascimento, no dia 22 de março de 2021, através da Ouvidoria Externa, com o título de Esperança Garcia. Esta homenagem, doutora Telma Lisboa recebeu pelas mãos dos movimentos sociais do Estado da Bahia, devido ao seu excelente trabalho científico, que se trata de um importante legado para toda a humanidade.
Ainda que num campo distante das Ciências Sociais. Essa Estrela e filha de nordestinos, nasceu no dia primeiro de fevereiro de 1976, onde foi criada e vive até hoje na zona norte do Estado, sendo a terceira de quatro filhas.
Desde sua infância sentiu as mazelas do racismo estrutural e da opressão de classe. Sua mãe, dona Jiucelia Lisboa do Nascimento, era uma abelha rainha, quilombola de Santiago do Iguape, e seu pai, Roque José do Nascimento, era da cidade de Nazaré das Farinhas, ambos municípios da região do Recôncavo baiano. Esses dois baluartes, foram o apoio e a sustentação, para que hoje a Dra. Telma Lisboa, possa gozar de todos os seus títulos.
A educação foi seu escudo para lutar e driblar o sistema político e econômico que impõe o local de subalternidade a população negra no Brasil. Estudou o então primário e ginásio, em escolas públicas municipais próximas a sua residência. Mudou algumas vezes de moradia, pois seus pais não tinham condições financeiras de comprar um imóvel.
Um episódio marcante no primário, foi ter sido humilhada por sua professora, devido a ser muito grande para a sua idade (7 anos). Telma realmente se desenvolveu muito bem no tamanho e na saúde. Num momento de descontração, Telma fazendo suas meninices comuns da sua faixa etária, foi bombardeada pela professora, com palavras como: repente, deste tamanho ainda na primeira série?… Não tem vergonha, não?… Além de ser deste tamanho, repetente, fica brincando na aula… Mas, a Telma sem entender como uma professora não sabia a idade de seus próprios alunos, retrucou de imediato e disse: repetente não, tenho sete anos, e estou na primeira série.
E a professora ainda rebateu: sua mentirosa!!!.
Mostrou-lhe uma dose do que viveu na sua vida mediante a sociedade racista e desigual em que vivemos. contados por ela mesma, neste mesmo período. E depois do intervalo (antigo recreio), a professora entra e pede desculpas em frente aos demais colegas, percebendo o erro após breve pesquisa no prontuário.
Quantas crianças negras como Telma Lisboa vivenciaram violações de direitos humanos na sua primeira infância e durante a sua formação escolar? A invisibilidade na historiografia e negação dos direitos da população negra brasileira são frutos de um Estado edificado com bases no racismo estrutural, da opressão de classe e de gênero ao longo da história do Brasil.
As mulheres negras são duplamente discriminadas, em razão da sua raça e também gênero. Ser mulher negra em uma sociedade machista não é fácil, os dados do IPEA (2017), mostram que a mulher negra tinha as piores condições de vida (algo mudou?), seja no que tange a educação, a moradia, o trabalho, estão na base da pirâmide social.
Para que as mulheres brancas pudessem conquistar sua autonomia na sociedade do país, as mulheres negras foram e ainda são fundamentais, pois são elas que desenvolvem as tarefas domésticas, na sua maioria.
E o que mudou na vida dessas mulheres? Será que superamos o século XIX? Ou ele está tão presente e nós não percebemos?
Telma Lisboa sempre persistente, e principalmente resiliente, resistiu, se reinventava a todo instante para quebrar os muros que nos impedem de acessar a nossa dignidade humana. Finalizou o ginásio em escola pública, no Ensino médio, fez Técnico em Eletrônica, na Escola Técnica Horácio Augusto da Silveira, no Ensino superior, cursou Engenharia Elétrica (a noite) na universidade de Mogi das Cruzes e trabalhava durante o dia.
Telma quebrando outra lógica da sociedade racista, classista e machista. Se formou Engenheira Elétrica, numa área hegemonicamente exercida por homens. O desempenho e o crescimento na Engenharia foi tão nítido que logo ingressou no Mestrado em Engenharia Biomédica, na mesma universidade, onde desenvolveu um dispositivo para auxiliar deficiente auditivo na visualização de alguns sinais sonoros.
As mulheres negras quando conseguem romper os grilhões da opressão que as cercam, toda sociedade ganha com o seu empoderamento. Não permitiu quedar-se no lugar que lhe fora reservado, enquanto mulher negra na pirâmide social, construindo novos paradigmas e perspectivas no campo da ciência a parir do olhar, do lugar de fala e das pesquisas realizadas.
No doutorado continuou ousando e rebelando-se, migrou da área de Engenharia para a área de Saúde. Motivada pelo quadro da fragilidade da saúde da sua mãe que havia infartado. Telma deslumbrou a possibilidade de utilizar células tronco para regenerar regiões lesionadas, assim, poderia através da pesquisa prolongar a vida de sua mãe e de outros pacientes. Não deu tempo. Telma ainda acredita que sua pesquisa ainda pode contribuir para salvar muitas vidas.
Neste sentido, ela teve a ideia que utilizasse a plasticidade da célula tronco em cânceres. Então escreveu um esboço de projeto e foi atrás de orientador, mas não encontrou caminhos fáceis. Apesar das muitas resistências e portas fechadas, uma professora médica e com formação em física aceitou orientá-la. Contudo foi necessário realizar um estágio durante dois anos sem remuneração para aprender a trabalhar com as técnicas que envolve a área da Biologia Molecular/Oncologia básica. Após esses dois anos de estágio, ela se matriculou e cursou doutorado, com bolsa.
A pesquisa realizada foi tão relevante que foi convidada para a Coppe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para cursar seu primeiro Pós-doutorado, e lá foi possível validar uma técnica que viabilizou diagnosticar de forma não invasiva e em tempo real – melanomas, Um tipo de câncer de pele muito agressivo em estágio avançado. Esta pesquisa, rendeu-lhe quatro prêmios e apontando uma técnica promissora no diagnóstico precoce, assim como, no tratamento do melanoma.
Portanto, engenhosidade, liberdade e autonomia de uma mulher preta sempre será em benefício do coletivo, e Angela Davis quando esteve na Bahia em 2016, no Julho das Pretas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), disse: “quando mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”
A luta das mulheres negras continua sendo uma ação revolucionária. Edificando a cada dia e acumulando forças, seja nos Estados Unidos, no Continente Europeu, no Continente Africano ou no Brasil, construtoras de uma nova ordem social, na perspectiva de uma sociedade justa e igualitária.
Enfim, as pesquisas realizadas pela pesquisador aqui citada apontam esperança e uma devolutiva no âmbito da saúde para as pessoas que estão em tratamento oncológico, na direção de um tratamento mais eficaz.
Seu trabalho contribuirá, temos certeza, significativamente para o desenvolvimento de novas terapias, mais específicas e com menos efeito colateral para os pacientes.
Uma das nossas estrelas que têm desconstruído paradigmas de teorias coloniais, permitindo novas perspectivas do conhecimento a serviço de toda humanidade. Sendo uma referência de inspiração para outras mulheres negras na conquista do seu espaço, e na construção de um mundo melhor apesar das barreiras, apesar do racismo.
*Sirlene Vanessa de Souza Assis é Ouvidora Geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia, mestranda do PPGNEIM-UFBA, Especialista de Gestão de Políticas Públicas Gênero e Raça PPGNEIM-UFBA, Assistente social UCSAL.
*Gilmar Bittencourt Santos Silva é Defensor Público do Estado da Bahia. Doutor em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSal. Pesquisador com pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa CAAE. Autor da obra Direitos dos remanescentes de quilombos: Uma dimensão de um direito constitucional. Membro da Comissão de Assuntos Internacionais da ANADEP
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Referências
BERETA, Murilo. Angela Davis: ativista anticapitalista mostra o caminho da luta. ADUNEB, Seção Sindicato dos Docentes da Universidade do Estado da Bahia, 26 jul. 2017. Disponível em: http://www.aduneb.com.br/nossa_historia.php. Acesso em: 28 maio 2021.
ESTRELAS além do tempo. Direção: Theodore Melfi. Intérpretes: Taraji P. Henson, Dorothy Vaughn, Mary Jackson et al. Roteiro: Alison Schroeder, Ted Melfi, Lori Lakin EUA: Hutcherson. FilmIsNow Movie Trailers International, 2016. (130 min).
PNAD, IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios. Rio de Janeiro: IBGE, 2003. Disponivel em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94935.pdf. Acesso em: 28 maio 2021.
IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça–1995 a 2015. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Disponível em: de: http://www. ipea. gov. br/portal/images/stories/PDFs/170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca. pdf, 2017. Acesso em: 28 maio 2021.
JULHO das pretas. Seminário, Mulheres negras no foco: mídia, representação e memória. 4. edição, 01 a 31 jul. 2016. Disponível em: https://institutoodara.org.br/wp-content/uploads/2019/05/Agenda-Julho-das-Pretas-2016.pdf. Acesso em: 28 maio 2021.
VOZ suprema do blues. Direção: George C. Wolfe. Intérpretes: Viola Davis, Chadwick Boseman, Colman Domingo et al. Roteiro: Ruben Santiago-Hudson. EUA: Netflix Brasil, 2020. (1h34min.)