“Canção de ninar para Kathlen”
Flávia Martins de Carvalho*
Em 24.06.2021
No último dia 8, perdemos Kathlen, uma jovem de 24 anos, grávida, morta por um tiro de fuzil que atingiu seu corpo e aniquilou seus sonhos. Os dois corações que batiam em Kathlen foram silenciados. E nesse silêncio, ouvimos o grito de sua mãe dizendo que não teria mais a filha no Dia das Mães; ouvimos o grito da sociedade clamando por justiça; ouvimos o grito do povo preto denunciando a necropolítica que opera nas comunidades.
E apesar de tantos gritos, eu só pude ouvir o silêncio de Kathlen.
Tentei evitar seu silêncio para não entrar em contato com essa dor dilacerante, uma dor que me toca profundamente, a mim e a todos e todas que ainda resistem na luta pela defesa dos direitos humanos.
Mas, nos últimos dias, a imagem doce de Kathlen habitou minha mente embalada por uma canção de ninar, talvez por sua expressão de menina, talvez pela criança que carregava no ventre.
Kathlen foi mais uma vítima de uma guerra que não faz vencedores; vítima da nossa falência enquanto sociedade, já que não somos capazes de garantir o mínimo de dignidade aos que vivem em condição de maior vulnerabilidade; vítima de um Estado que não parece perseguir de forma adequada o objetivo constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Ela tombou em silêncio, mas nós não podemos silenciar e tomar como natural a morte de pessoas pretas e pobres só porque vivem nas comunidades.
Assim, diante do desafio de escrever mais uma coluna, quero homenagear-te, Kathlen querida, com essa canção de ninar, soprada aos meus ouvidos por nossas ancestrais. Que ela possa embalar seu caminho de volta ao Orum:
“Canção de ninar para Kathlen, a mãe adormecida antes de nascer
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para que não vejas quantos de nós ainda morrem sem razão, pelas mãos daqueles que deveriam nos proteger.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para que não sintas a dor das mães que perdem seus filhos para a violência do Estado e para a violência que decorre da falta do Estado.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para que encontres a paz que não está nos morros, nas favelas, nas vielas, nos becos das comunidades, onde se vive o inferno nosso de cada dia.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para que tua casa não seja invadida, a qualquer hora do dia ou da noite, sem ordem ou mandado judicial, em nome de uma guerra que só mata e não tem vencedores.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme porque o descanso é teu direito, já que todos os outros direitos te foram negados.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para que possas sonhar com teu filho nos braços, filho que não veio a esse mundo, onde nossas vidas são abreviadas antes mesmo que comecem.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme e sonha com um mundo onde teus sonhos possam ser realidade, pois aqui ceifam todas as nossas possibilidades.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme com tua pele negra e teu cabelo trançado, traços da Mãe África, berço de nossos antepassados.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme nos braços de nossas ancestrais, que também tiveram seus corpos marcados, não por fuzis, mas por chibatas e violências sexuais.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme porque teu sono é resistência, é presença, é potência, porque jamais conseguirão nos silenciar.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para se unir em amor ao coração de tua mãe e de tantas outras mães, que não terão mais um Feliz Dia das Mães.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme com a venda que tapa os olhos da Justiça, para que esta possa enxergar e punir aqueles que te levaram daqui.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para que não tenhas mais que conviver com o fascismo, o racismo, o machismo, o sexismo e todos os outros “ismos” que decorrem da pequenez humana.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme enquanto choramos o nosso fracasso como humanidade diante de tanta desumanidade.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme no silêncio enquanto nossos corações gritam e clamam para que a tua tenha sido a última vida a ser derramada injustamente.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para evitar outras tragédias, filhos sem mãe, mães sem filhos, outros tiros.
Dorme, mãezinha. Dorme. Dorme para nos despertar, para nos sacudir, para nos acudir, para nos acalmar diante da certeza de que estás embalada pelos orixás.
Dorme, mãezinha. Dorme. E que o teu sono eterno seja forte o suficiente para nos acordar desse pesadelo!”
Kathlen de Oliveira Romeu, presente!
*Flávia Martins de Carvalho é juíza no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Mestra em Direito pela UFRJ. Graduada em Direito pela UFRJ e em Comunicação Social pela UERJ. Diretora de Promoção da Igualdade Racial da Associação dos Magistrados Brasileiros.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
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Foto destaque: ponte.org