26 de Junho: Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura
Thais Lemos Duarte*
Em 26.06.2021
A data de 26 de junho foi firmada pela ONU como o “Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura”, servindo para recordar a importância de não repetição de práticas violentas estatais e da reparação das violações executadas. De fato, quando pensamos sobre o que é tortura, é comum associarmos o ato a algum meio cruel cometido por um agente público para obter a confissão de algum criminoso. Essa visão, apesar de não estar errada, é um modo tradicional de pensar a tortura e tende a limitá-la a situações momentâneas e individuais. Entretanto, considerando as diversas formas como as desigualdades estruturais (muitas das quais ensejadas pelo Estado) provocam sofrimentos e violências em nosso país, o texto desta semana da Coluna Por Elas propõe uma reflexão relativamente diferente, estendendo o significado da tortura com vistas a abarcar situações mais amplas, como as vivenciadas por Joana, protagonista da história que descrevo a seguir.
Sobre Joanas
Joana abriu os olhos e deu com a parede de casa descascando. Mais um dia comum, numa rotina em que morava com a mãe e os quatro irmãos num ponto em cima do morro, em uma favela em meio ao Rio de Janeiro, cidade que ela não conhecia tão bem ainda. O pai tinha ido embora fazia tempo. Nunca mais tinha visto. Já a mãe se desdobrava para trazer comida para casa, manter tudo limpo e fazer com que os filhos fossem ao colégio. Joana a apoiava, pois era a mais velha entre todos. Com onze anos, dava banho nos irmãos menores, os levava à escola e os ajudava nos deveres de casa. Sabia ler bem e era ótima em matemática, só não tinha muito tempo para se dedicar aos estudos como queria.
Aos quinze anos, com as amigas, começou a ir às festas da comunidade onde morava, sem esquecer que precisava amparar a mãe no cuidado dos meninos. Queria seguir aproveitando essa fase da vida, mas buscava se preservar. Estavam dizendo que a favela se tornava aos poucos perigosa, com um pessoal vendendo droga em alguns becos. A polícia entrava de vez em quando, mas parecia fazer vista grossa na maioria das vezes.
Em uma das festas, conheceu um rapaz por quem se apaixonou na primeira olhada. Decidiram morar juntos dois meses depois. Ele trabalhava como vendedor no Centro da cidade e ela tinha largado os estudos para contribuir com a família. Todos os dias ia para a casa da senhora em Copacabana limpar as coisas por lá e cuidar dos meninos dela, porque a patroa precisava trabalhar fora. Então, juntando o salário (curto e mínimo) de Joana e o do esposo, já dava para cobrir as contas. Fora que a mãe não iria se importar se fizessem uma obra em casa, construindo um quarto a mais na parte traseira de onde moravam agora.
Veio o primeiro filho, depois o segundo e, por fim, o terceiro, uma menina. O marido deu para beber e ficava cada vez menos tempo em casa. Num belo dia, sumiu. Não deu mais as caras. Joana tentou procurá-lo no trabalho, mas o patrão disse que também não via o homem há tempos. O dinheiro, então, minguou. As crianças tiveram de se adaptar a uma nova rotina de ver pouco a mãe e ficar mais tempo com a avó, que estava cada vez mais velha e cansada. Os irmãos de Joana tinham ido viver suas vidas, cada um num canto. Só apareciam de vez em quando para os feriados e fim de ano.
Além de trabalhar na casa da patroa de Copacabana, agora sem poder contar com a renda do marido, Joana teve de pegar um serviço noturno de servente num prédio no Centro para conseguir colocar comida em casa. Mas, apesar de o dinheiro ser uma preocupação, sua principal questão era com a segurança dos filhos. Percebia que a favela estava ficando muito perigosa. Se antes entrava de vez em quando, a polícia passou a fazer operação quase toda semana. Ela trocava tiros com os rapazes que ficavam na boca de fumo e, por isso, eles se armavam até os dentes para proteger os negócios. Em algumas vezes, inclusive, não dava para sair de casa até o tiroteio acabar.
Quando conseguia tempo em sua rotina, Joana sorria para si orgulhosa por dar conta das coisas. Sentia falta das amigas e das festinhas de antes, além de ver pouco seus filhos pela quantidade de trabalho. Por outro lado, sabia que eles estavam crescendo bem a cada dia. De qualquer forma, quando um dos meninos ficava doente, Joana apertava sua rotina e conseguia levá-lo no posto da favela. A patroa até entendia que nesses dias tinha de chegar um pouco mais tarde. Enfim, tudo ia como podia.
“O juiz decidiu a vida dele em menos de cinco minutos e o mandou para o Complexo de Gericinó”
Só ficou surpresa quando soube que seu filho mais velho, agora com 19 anos, tinha sido preso pela polícia durante uma operação no morro. Os vizinhos não conseguiram dizer para onde o levaram. Joana foi, então, à delegacia mais próxima de onde morava e soube que ele tinha uma audiência no fórum no dia seguinte. O juiz ia dizer se o filho ficaria preso ou não. Lá foi ela para descobrir que o rapaz tinha sido detido por tráfico de drogas e que, sim, ficaria preso. O juiz decidiu a vida dele em menos de cinco minutos e o mandou para o Complexo de Gericinó, dizendo que traficantes devem refletir sobre o que fazem de sua vida na cadeia.
Joana foi procurar um advogado para defender o filho, mas descobriu que suas economias não eram suficientes para pagar seus serviços. Depois de muito falar com várias pessoas, descobriu em qual prisão o rapaz foi parar e tentou visitá-lo. Nada. Disseram que ela teria de entregar um monte de documentos para conseguir a carteirinha de visitante, fora que também descobriu que as visitas aconteciam nos dias em que trabalhava. De forma alguma a patroa entenderia que ela tinha um filho preso. A saída, então, era pedir demissão e ficar apenas com o emprego da noite. O dinheiro ia encurtar, só que, pelo menos, conseguiria fazer as visitas.
Seus outros dois filhos ajudavam na casa. A menina mais nova era boa em fazer comida e limpar as coisas, além de cuidar da avó. O do meio ia para a escola, gostava de sair com os amigos e tinha jeito para o trabalho. Todo mundo contribuía com o irmão preso. Ajudavam na “sucata”, a sacola com comida para levar para levar na visita, somavam o pouco dinheiro que tinham para a mãe pegar o ônibus até Gericinó, faziam companhia para Joana, que virava a noite antes de ir ver o filho preso, na ansiedade de dar um abraço nele.
A visita era puxada. Assim que o filho foi parar em Gericinó, ela tinha de ficar pelada na frente das guardas e ficar se agachando várias vezes. Uma vez pediram para colocar um espelho entre as pernas, porque achavam que ela podia levar alguma droga na vagina. Depois as coisas ficaram um pouco mais tecnológicas, porque a direção do lugar instalou um detector de metais na porta da prisão. Era só passar pela máquina e pronto. Somente era impedida de entrar a mulher que realmente tentava levar alguma coisa para dentro do estabelecimento, só que isso era muito raro de acontecer.
Toda essa tensão das revistas passava quando podia dar um abraço no filho. Sentir o cheiro dele. Passar a mão no cabelo dele. Ouvir as histórias dele. Na verdade, as coisas lá dentro da prisão não pareciam ir bem. O lugar era cheio de gente, superlotado. Era preciso ficar sempre atento ao que acontecia, caso contrário, dava briga entre as pessoas. E, aí, a facção criminosa que dominava a cadeia podia ir para cima do preso. Se algum homem ficasse doente (e muitos pareciam ficar), por exemplo, não se podia fazer nada a não ser esperar pelo médico que, em muitos casos, não atendia as pessoas como deveria. Insistir era pior. Deixava tudo mais tenso.
Ela não via a hora de o filho ser solto. Queria que isso acontecesse o quanto antes, porque o rapaz estava cada vez mais magro. A comida da prisão era de uma qualidade muito ruim. E ele que sempre foi forte, bonito… Só que a liberação só veio seis anos depois daquela primeira audiência no fórum. A pena que deram ao filho foi longa e Joana até escutou ter sido injusta. O advogado público que defendeu o rapaz tentou recorrer, mas não teve o pedido atendido. Os juízes não eram generosos com quem era taxado de traficante.
No dia em que o filho chegou em casa foi aquela festa. Teve samba, cerveja e carne assando na brasa. Foi uma felicidade imensa. Só que não foi fácil a adaptação dele. Joana se sentia como uma nuvem perto do seu filho, amortecendo seus atos, porque ele parecia ter desaprendido a viver uma vida normal. O rapaz não conseguia emprego, porque ninguém queria dar trabalho para gente “fichada”. Então, ele passava o dia na rua, com os amigos, sem muita perspectiva. Joana ficava preocupada, mas pensava que era melhor ele assim do que preso.
Mas não. Três meses depois que ele saiu de Gericinó, a polícia fez uma operação na favela. O Caveirão entrou e matou cinco pessoas. Um deles, o filho de Joana. Ela foi ao Instituto Médico Legal reconhecer o corpo do rapaz e não pôde se aguentar em pé. Sentiu raiva por terem tirado o filho de sua vida. Sentiu raiva por terem tirado a vida do filho. Foi à delegacia denunciar que o rapaz parecia ter levado um tiro enquanto estava rendido, mas a trataram mal. Tentaram convencê-la de que as coisas aconteceram daquela forma, porque ela não era uma mãe boa o suficiente, afinal, havia “criado um marginal”. E ela se culpou. Sentiu raiva de si, muita raiva. Mas sentiu ainda mais raiva do policial que matou seu filho, que disse que ele estava com uma arma na mão trocando tiros. Joana queria justiça, mas não sabia nem onde e nem como ter isso, se é que um dia iria mesmo conseguir.
Foi assim que conheceu o movimento de mães que atuava na favela onde morava. Joana teve contato com outras mulheres como ela, com experiências parecidas, com filhos também mortos pelo Estado. E aprendeu que, até então, tinha vivido uma vida injusta; que seu filho assassinado merecia um futuro diferente; que a polícia não pode entrar na favela achando que é dona de tudo; que outros órgãos, como o Ministério Público e o Judiciário, não estão preocupados em garantir os direitos das pessoas, mas em criminalizar os pobres, negros e moradores de favela. Não à toa, o processo relacionado à morte do filho nem andou na Justiça. Os policiais envolvidos saíram impunes.
Por esses motivos, incorporou em sua vida a frase que já tinha escutado tantas vezes antes de algumas amigas, mas que nunca pareceu ter muito significado: transformar o “luto em luta”. Foi para as portas dos prédios públicos se manifestar, conversou com outras mães para falar sobre o que viveu, fez reuniões para ajudar a pensar uma vida diferente para os pobres, resistiu aos policiais que faziam blitz na porta da favela, ameaçando as pessoas que lá viviam.
Só que estava cansada. Lutar todos os dias cansa. A sua mãe tinha morrido não fazia muito, talvez de tristeza em razão da morte do neto. Os outros dois filhos tinham ido viver suas vidas e ela estava sozinha. Na luta com as companheiras, mas sozinha em casa. Ainda trabalhava para se manter, só que sem a energia de antes. Seu coração já não era mais o mesmo, sentindo-o falhar de vez em quando.
Um dia, quando acordou e viu a parede descascada da casa onde morava, Joana fechou os olhos e deixou este mundo ao sentir um aperto no peito.
Moral da história?
Joana foi o nome escolhido para a protagonista dessa história que poderia ser a narrativa da vida de tantas outras mulheres de periferia do país. Mulheres, normalmente, negras e pobres, com as quais já pude conversar durante as pesquisas que desenvolvo. Elas precisam manter suas famílias num contexto de extrema vulnerabilidade, lidar com as múltiplas violências e discriminações que atravessam de diferentes formas suas trajetórias, como uma revista vexatória na entrada de uma unidade prisional, e, não raro, experenciam o luto, fruto da morte de algum parente próximo causada pelo Estado, em geral de seus filhos.
Muitas pessoas tendem a analisar vidas assim como decorrências de más escolhas individuais, o que resulta em compreensões simplistas sobre questões sociais complexas. Nessa lógica, a pobreza é explicada pela falta de esforço da pessoa em “enriquecer”, ao passo que o contato com o “mundo do crime” é analisado como “mau caratismo”, afinal, muitos indivíduos pobres levariam uma vida “digna” e “honesta”, sendo “cidadãos de bem”. Ainda, essa ótica também costuma naturalizar o papel feminino como aquele centrado no cuidado do outro, mesmo que essa tarefa se destine a atender a outra mulher, mais enriquecida, e seus filhos. Em todos esses casos, a falácia da meritocracia, a qual indica que basta se esforçar para almejar uma posição social e econômica prestigiosa, impera em nosso imaginário.
Em linhas breves, com base na trajetória de Joana, a intenção deste texto é questionar essa perspectiva. Embora, obviamente, não possamos ignorar as escolhas que as pessoas fazem em suas vidas, há questões estruturais que influem de forma significativa nas decisões individuais. Entre outros aspectos, compõem esse quadro as desigualdades de classe que tendem a garantir de modo perene uma posição dominante aos ricos e um papel de sujeição aos pobres. Em reforço a isso, há a violência urbana e a percepção estigmatizante devotada a determinados grupos, a despeito da ação de movimentos sociais que, historicamente, tentam mudar o cenário do nosso país. Nesse contexto desigual, cabe, então, à mulher negra e pobre o emprego precário doméstico, considerando sua necessidade de arcar com as despesas da casa quase sempre sozinha. Por sua vez, não raro, o destino do homem negro e pobre é a prisão ou a morte violenta. Para lerem mais sobre o tema, indico autoras brasileiras que fizeram reflexões profundas sobre as relações de classe, gênero e raça de nosso país, como, entre outras, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro e Heleieth Saffioti.
Num cenário desse tipo vigora a lógica de que “bandido bom é bandido morto”, o que acaba por incitar práticas que, além de não reverterem o problema da criminalidade, privilegiam o enfrentamento policial e corroboram o assassinato do suposto criminoso. Logo, órgãos do sistema de justiça criminal, como a polícia, o Judiciário e o Ministério Público, tendem a focar sua atuação em populações pauperizadas e discriminadas, sob o jugo da “guerra às drogas”, levando-as a compor as fileiras da privação de liberdade no Brasil, geralmente sujeitas a condições deploráveis, quando não, executando os considerados criminosos. Em uníssono, práticas com esse perfil ajudam a perpetuar as muitas desigualdades que afligem há séculos nosso país, formando trajetórias torturáveis.
Creio ser de extrema importância chamar a atenção aqui à palavra “tortura”, pois não devemos compreender o ato tão só como algo isolado em determinado percurso individual, ocorrido em momento e local específicos. Embora as normativas seguidas pelo Brasil tendam a analisar a tortura dessa maneira, como as publicadas pela ONU e a Lei 9455/97, a proposta deste texto é compreender a prática por uma perspectiva relativamente diferente.
Muitas pessoas, como Joana, vivenciam a violência cometida pelo Estado em seu dia a dia. Lidam com uma diversidade de violações, físicas e psíquicas, perpetuadas de modo difuso. Em muitos casos, essas violências geram sofrimento e adoecimento (se não a morte), o que, porém, é de difícil tradução e identificação. A suspeição quase permanente por parte da polícia, os processos de estigmatização, o medo de a qualquer momento sofrer algum tipo de violência, o tratamento discriminatório oferecido pelo sistema de justiça criminal, a pauperização contínua, a falta de oportunidades e a não resposta por justiça devem ser compreendidos como traços que compõem vidas torturáveis. No entanto, essas opressões cometidas pelo Estado, legitimadas pela sociedade em geral, encontram-se tão naturalizadas que não chegam, na maioria das vezes, a serem compreendidas como violências. Deixam, assim, de sofrer um questionamento devido, tendendo à invisibilização.
A data de 26 de junho, relativa ao Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, ajuda a publicizar e a reforçar a importância do debate sobre violência estatal. Esse momento permite olhar trajetórias como as de Joana e estranhá-las. Possibilita reconhecer o Estado como um ente propulsor de opressões, que não deveriam ser relativizadas.
Que histórias como a descrita aqui sejam reconhecidas como vidas atravessadas pela violação e, portanto, deixem de se repetir.
*Thais Lemos Duarte é socióloga e pesquisadora de Pós-Doutorado do CRISP, na UFMG.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.