Sobre cloroquina, cegos e aleatórios 

Por

Alcivam Paulo de Oliveira*

Em 15.07.2021

Os contextos e as conjunturas terminam nos levando para coisas e situações inesperadas. Eu nunca imaginei ver o dia em que uma especialista em Epistemologia, disciplina da filosofia que trata dos métodos científicos, ter tanta audiência na TV e nas redes sociais, como é o caso da doutora Natalia Pasternak. Muito menos imaginei ver a metodologia científica como tema de conversas coloquiais. Em um país onde apenas 1 em cada 5 brasileiros maiores de 25 anos têm curso superior, é de se espantar. Lembrando que essa é a taxa para todos. Quando se considera pobres e negros, ela cai 1 em cada 10.
Mas o fato é que isso aconteceu, colocando em cena falas estranhas como esta: a pesquisa para ser científica tem que ser feita com duplo-cego e randomizada. Teria a ver com a piada de uma dupla de cegos, contada por Ariano Suassuna (https://www.youtube.com/watch?v=m33Lr4tu29s)? Nada disso, é pura Epistemologia das ciências da saúde. Para entendê-la melhor, é preciso considerarmos duas condições exigidas no modo de fazer ciência.
A primeira condição: a ciência quer estabelecer o que se chama de nexo-causal entre fenômenos, aquilo que liga de maneira necessária e determinante duas ações, sendo uma causa das consequências na outra. Se aquecermos a água a 100 graus ela passará do estado líquido para o gasoso, ou seja, a mudança na temperatura causa variação no estado da água. Saber desse nexo-causal possibilitou a invenção do motor a vapor. Foi descobrindo nexos-causais entre fenômenos que a ciência avançou, superando conhecimentos construídos com observações simples do dia a dia, como as que afirmavam a origem dos ratos pelo lixo (a famosa abiogênese) ou que os cometas eram presságios de coisa ruins enviados pelos deuses (https://www.facebook.com/watch/?v=1568610626667482).
Em segundo lugar, essas explicações devem ser objetivas, elas devem ser induzidas, determinadas pelo objeto (fenômeno) analisado, devendo ser livre de qualquer interpretação subjetiva. O que a pesquisa científica busca é a exclusão de contaminações por ideologia (no sentido amplo do termo) ou erros do pesquisador, ou ainda por influências do contexto. Sendo feita com nordestinos, gaúchos ou manauaras; por cristãos ou budistas; brasileiros ou chineses; por torcedores do glorioso Sport Clube do Recife ou do “Santinha”; homem, mulher ou LGBTQIA+, todas as pessoas, ao realizarem uma mesma pesquisa, devem chegar à mesma conclusão sobre o nexo-causal entre as variáveis pesquisadas.
Apesar de parecer algo simples e fácil, essa busca por superar contaminações externas é difícil e complexa. A linguagem, os valores, os interesses e até os vícios do funcionamento do cérebro humano, fazem com que os riscos de contaminação sejam altos. E uma vez contaminada a pesquisa, seus resultados ficam comprometidos, ela deixa de ser objetiva.  Por isso se aplica as regras matemáticas para se inferir resultados, pois elas são universais. Em qualquer cultura 2+2 será sempre igual a 4; em qualquer cultura se eu sei que se X+3=5, saberei que X=2.
Aqui voltamos à doutora Natália e à questão do tratamento precoce para a Covid-19. Ela ilustra muito bem esse diferencial do conhecimento científico em relação ao conhecimento do senso comum, ou apenas empírico, vindo de experiências individuais e coletivas.
Na CPI da Covid, os médicos Francisco Alves e Ricardo Zimerman fizeram a defesa do tratamento precoce, contrariando os que acham ser essa defesa, coisa apenas daquele “tio da cloroquina”, o senador Luiz Carlos Heinze, ou de quem é ignorante, não conhece medicina. O Doutor Ricardo, inclusive, fez a defesa epistemológica de seus estudos, afirmando o valor da medicina baseada em evidências, enfatizando o valor das observações dos médicos em seus consultórios, como pode ser ver aqui: <https://www.youtube.com/watch?v=-0ETyGLvYF4>. O que é verdade. Toda e qualquer ciência tem suporte no senso comum, no conhecimento construído no dia a dia da vida cotidiana.
O engenheiro escolhe o traçado da rodovia a partir da estrada carroçável, construída pelas pessoas do lugar, com suas práticas; a farmacognosia – a construção dos conhecimentos sobre a interação entre drogas e sistemas biológicos – jamais poderá renunciar ao conhecimento da medicina popular. Mas, nos dois casos e, também, na medicina baseada em evidências, as observações iniciais são ponto de partida, fato que dão origem à pesquisa científica, mas não são a pesquisa em si.
O fato de partir da estrada carroçável para traçar a rodovia, não significa que o engenheiro fará exatamente o que manda a tradição dos viajantes; considerar que o chá de boldo é usado para problemas de digestão não é o suficiente para seu reconhecimento científico como droga eficaz. Da mesma forma, a relação entre a ingestão de um medicamento e a cura de um paciente não significa que isso já defina a relação causal entre o medicamento e cura de forma ampla e generalizada.
A fé religiosa, a relação de confiança com o médico, a hipocondria ou a proporção de pessoas que têm sintomas graves ao ser infectado por um vírus, podem contaminar esse conhecimento. Tem gente, como o presidente Messias, que acredita apenas e totalmente nos seus olhos, nos seus sentidos. Ele e um monte de seus seguidores, acreditam que se algo aconteceu com uma, ou com cem, ou com mil pessoas, irá acontecer com todo mundo. É a compreensão empirista da realidade, a fé que o conhecimento verdadeiro vem pelos sentidos.
Para superar esse risco de contaminação a ciência propõe o tal método do “duplo-cego randomizado”. No caso do tratamento precoce da Covid-19, a pesquisa segundo esse método deveria acontecer de forma que se retirasse toda e qualquer possibilidade de contaminação, estabelecendo, sem dúvidas, a existência de uma relação causal entre tomar cloroquina e não se pegar Covid-19, ou tê-la na forma leve.  Assim, deveria se fazer um experimento onde o médico que receitasse a cloroquina não soubesse se o comprimido é realmente cloroquina ou se é um placebo, estando cego em relação ao que está receitando. Quem tomasse também não deveria saber se tomou cloroquina ou placebo, estando cego em relação ao remédio receitado. Eis os dois cegos. Nesse caso, não havendo infecção nos que tomaram placebo, se saberia que a causa não foi a cloroquina.
Essas duplas (de médico e paciente) deveriam ser selecionadas por sorteio (aleatoriamente) em determinada população, numa amostra que representasse a população total. A amostra deveria ter a mesma proporção de cada faixa etária, sexo, cor, empobrecidos e enriquecidos etc., tornando-se, portanto, um estudo randomizado, chamado assim por vir do inglês “random” que significa “ao modo casual”, aleatório. Com esse procedimento se teria a certeza de não ter havido escolhas subjetivas dos pesquisadores.
Sendo randomizado, evita-se que as conclusões sejam parciais. Por exemplo, se o médico que receita for um hebiatra – especialista em adolescentes – a eficácia da cloroquina tenderá a ser muito maior do que se ele for um geriatra. A Covid mata mais os idosos! Se o médico tiver pacientes que não andam de ônibus, que podem fazer isolamento social ou que são mais bem alimentadas, sua taxa de sucesso também será maior. Considerando que 85% dos infectados pelo coronavírus não têm sintomas, qualquer taxa de sucesso igual  ou inferior a isso, também será suspeita. Por fim, o número de testados (da amostra) deverá ser o mais próximo possível da população total.
Agora, me diga, isso pode acontecer nos consultórios? Isso pode ser feito pela simples prática médica de consultar seus pacientes?  Nesses casos, ao invés de duplo-cego, temos é um duplo-expertos; ao invés de escolha randomizada, temos é escolha a dedo! Por isso, os argumentos de que aquele ou aquela médica, em uma determinada cidade teve sucesso receitando cloroquina, não se sustentam à luz da ciência. Não são científicas. E daí? Bem, a ciência pode cometer erros, é verdade. Mas, entre correr um risco guiado pela ciência e correr um risco guiado pelo empirismo, não tenho dúvidas. Aliás, se fosse “Água Rabelo” no lugar de cloroquina, será que os resultados seriam diferentes?
Se é assim, por que há tanto interesse, se insiste tanto em defender a cloroquina e outras drogas no tratamento precoce? Se não é pelo negacionismo científico fruto da ignorância, por que será? Bem, aí já é coisa da intersecção entre interesses políticos e econômicos. Paralisar a máquina econômica com isolamento social provoca perdas de capital e ainda gera gastos estatais com empobrecidos, refletindo nos impostos. Em última hipótese, não é de bom tom que um presidente apresentado e que se apresentou como um “messias” tem recebido uma praga do Egito em seu governo.  Mas, isso é assunto, para outro diálogo entre nós.
*Alcivam Paulo de Oliveira é professor. alcivampaulodeoliveira@gmail.com
Foto destaque: Internet