O Bolsonaro mártir
Ayrton Maciel*
Em 19.07.2021
Querer ser um mártir faz parte do disfarce, é de quem não mede consequências, nem para si mesmo.
O tempo é o senhor do esquecimento. Não só da razão, como diz o provérbio português. Com o tempo, há de se esquecer, e o esquecimento é esconderijo de covardes e malfeitores. O mal passa, vira história ou arquivo. É tudo o que precisa a covardia e o mal. Episódios terríveis, que se mantêm sem respostas, são espelhos: o assassinato de Marielle completou três anos, sem que se conheça o mandante; há pouco, a violência de policiais militares de Pernambuco contra um protesto, que deixou dois cidadãos cegos de um olho, não se sabe de onde partiu a ordem de disparar. São apostas na passagem do tempo.
Gestos para desviar a atenção sobre fatos preponderantes são uma tática a favor do tempo. Em determinadas lideranças, tornam-se uma praxe estratégica. A foto do presidente da República, Jair Bolsonaro, prostrado como um moribundo sobre uma cama de hospital em Brasília – publicada pelo próprio em suas redes sociais, e imediatamente disparada pelas redes de aliados -, antes da transferência para hospital em São Paulo, revela uma proposital e tática exploração política da doença (uma obstrução intestinal) no aparente risco de morte. Não há limite ético nem escrúpulo no gesto.
A exposição de um momento doloroso, com evidente objetivo de ganho político, é uma aposta no tempo, no “vão esquecer”. Desvia a atenção, e espera que o foco caia – com o tempo – no esquecimento. Acontece que o foco é de tamanha dimensão que uma obstrução de fezes não é suficiente para mudar. Bolsonaro é o foco maior, agora, não pela obstrução intestinal, mas pelo grau de comprometimento pessoal e do seu governo na gestão corrupta da Covid-19. O avanço das investigações e as descobertas da CPI do Senado põem a nus o general e ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e sua equipe. O presidente não é um inocente. Ele está pelado e prostrado em uma cama culpas.
O presidente teria de afirmar que não manda em nada, para dizer que nada sabia e tentar transferir “as culpas” para um conluio de militares e civis que se instalou na Saúde, em plena escalada da pandemia, buscando tirar proveito em milhões. Bolsonaro está nu e sujo. Ele não quer apenas desviar a atenção da CPI, torcendo pelo esquecimento do tempo. O recesso da CPI do Senado serve-lhe como um sopro. Mas, ele está pelado, sujo e a descoberto no palanque que antecipou. As pesquisas desfavoráveis e a possibilidade de um dos mais de 100 pedidos de impeachment – a depender das ruas, do humor e do limite de comprometimento de Arthur Lira (PP/AL), presidente da Câmara – ser desengavetado são uma espada permanente sobre o pescoço.
Bolsonaro zomba como um gaiato da CPI (sempre zombou das ruas opositoras e dos impeachments), porém, pode ser ela a condição que falta para a espada congressual deslizar. As investigações chegam a deputados, coronéis e, agora, ao general. Pazuello mentiu sem constrangimento. Nem a farda o freou. Nesse cenário cheio de cenas e capítulos, Bolsonaro vai continuar tentando desviar a atenção, apostando no tempo e esperando o esquecimento. Por isso, cada episódio natural terá uma consequência artificial, e cada episódio artificial será um obstáculo, um bloqueio, uma busca de retirada de foco do preponderante. Conta para isso com a sua rede de apoiadores.
Bolsonaro não se impõe limites, nem tem remorsos. Consegue propositalmente provocar, em aliados e adversários, os “instintos mais primitivos”, parafraseando inominável político que o apoia. Nos aliados, estimula o menosprezo, a intolerância, os preconceitos, o ódio e a violência como solução para os problemas nacionais; nos inimigos (é como os vê), desperta a vindita e a repugnância, além de sacrificar a convivência e abalar a sanidade. Ele, entretanto, vai prosseguir disfarçando. Não há chance para se enganar com o contrário. Querer ser um mártir faz parte do disfarce, é de quem não mede consequências, nem para si mesmo. Dirão, os aliados: é corajoso, não teme o próprio fim. Outros dirão: é covarde, explora a boa-fé de incautos e a cumplicidade de oráculos e coronéis.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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