Terra, vida e esperança em Luiz Gonzaga
Rômulo Rossi Leal Carvalho*
Em 02.08.2021
Em memória aos 32 anos da passagem do Rei do Baião
Rei é um título de nobreza bastante aspirado. Muitos o apetecem, mas, às vezes, não nascem com tal predisposição; uns até, quando do surgimento da burguesia, para estarem em meio aos nobres, compravam alguns títulos: duque, visconde, arquiduque, mas nunca, no fundo, foram vistos como tal. Lá no meu Nordeste, porém, a monarquia da música conheceu um Rei. De poucas letras, mas o suficiente para eternizá-lo nas estrelas que rutilavam em um céu limpo, sem previsão de chuva, na miragem de uma estiagem vindoura, em terras ressequidas.
O menino, Luiz de Januário, aos oito anos de idade, já ensaiava a magnificência que um dia seria reconhecido pelo Nordeste, pelo Brasil, pelo mundo. Tocou um forró à noite, numa fazenda meio distante da simpática Exu, na divisa entre os estados de Pernambuco e Ceará. Por isso, o futuro velho Lua dizia que uma banda sua era pernambucana e a outra cearense. Eita, Nordeste da peste! Talvez, vendo as tantas asas brancas – que de brancas só têm as asas mesmo – sorria para a vida levando o que, em seu show de despedida, tanto comentou: esperança.
O primeiro amor, Nazinha, até teve correspondência, mas os sinais notórios do patriarcalismo – do qual ele também, em toda a sua trajetória, foi expoente – obstaculizou com que consumasse seus planos de um feliz matrimônio. Puxou da bainha uma faca, numa feira do Exu. Coisa boa não sairia dali. E até que, por outro ângulo, o destino o galardoou quando sua mãe, dona Santana, lhe dera uma surra de “tirar o coro”, o que o fez sair de casa, vender sua sanfona em Ouricuri e seguir viagem para Fortaleza, onde se alistou no Exército e lá passou nove anos.
Seu Januário, o velho Januário da sanfoninha de oito baixos – hoje em exposição no Parque Asa Branca, em Exu -, lhe visitava na capital cearense. E Lua, numa dessas visitas, enviou um recado à mãe no qual disse que a dor da “pisa” já havia passado. Luiz não atirou também, como prometeu ao genitor e, no Exército, pelo seu bom desempenho na corneta, ficou conhecido como “Bico de Aço”. Sua vocação, porém, não era aquela, mas o velho acordeon que o esperava nas estradas da vida.
Seguiu viagem, conheceu muita gente. Foi feliz nessas andanças ora com rumo, ora sem destino. Na capital do Brasil à época, Rio de Janeiro, fez amigos. Tocando, a princípio, músicas portuguesas, não agradou seu primeiro público. E não agradaria, pois, por excelência, seu pendor era retratar, sob suas lentes, o seu Nordeste. E foi assim com a explosão de Xamego. E quem não souber o que é isso, do que se trata, pergunta para a vovó. Nessa mesma época, conheceu aquela que, livre, desimpedida, graciosa, lhe fizera transmutar o semblante: Odaléia dos Santos. Logo, uma gravidez, uma suspeita, os desentendimentos. Sobreveio Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o rebelde Gonzaguinha, e para o infortúnio de Lua, a morte de Léia, tempos depois, por tuberculose.
O já Gonzagão, conhecido por essas terras tupiniquins, teve, ao longo de muitos anos, contendas com o filho que registrou como seu, embora desconfiasse da paternidade. Até o dia que juntos cantaram Pense n’eu, muitas águas rolaram no Riacho do Navio para desaguar no São Francisco da vida. Criado pelos padrinhos e ainda bastante doente – talvez por herança genética da mãe -, Gonzaguinha enveredou pela MPB, gerando outro desafeto com o Rei do Baião devido os acordes soarem “comunistas”.
E o tempo passava. Luiz, em 1948, casava-se com Helena. Descobria, também, que era estéril, o que confirmava muitas de suas suspeitas em relação ao primogênito. Mas ele era seu filho e acabou. Foi categórico nessa decisão. Luiz era assim: de palavra. Uma vez proferida, em seguida cumprida.
As muitas parcerias que acumulou em vida lhe renderam sucessos insubstituíveis, assim como ele foi e é. Luiz, sem blasonar, teve uma capacidade colossal de, em poucos versos, descrever uma imensidão, que nem sempre, como muitos podem pensar, se reduziu à seca. Muito pelo contrário: Luiz expôs desde o ABC do sertão até às preocupações com o planeta, com Xote ecológico. Não se reduz um artista a um único tema sobre o qual este se detém em toda a vida. É este, pois, justamente o atributo que diferencia o artista do não artista: a capacidade de se reinventar, de criar, produzir e emocionar. Luiz congregou tudo isso em seu gibão. Ainda mais em seu coração.
Entre os tantos amigos que o acompanharam, não nos esqueçamos da parceria com o advogado Humberto Teixeira e com o médico Zé Dantas, com quem escreveu sucessos como a imortal Asa Branca, com o primeiro; e Xote das meninas, com o segundo. Além disso, gravou canções escritas pelo poeta Zé Marcolino, para quem Tom Oliveira dedicou Tributo a Zé Marcolino. João Silva e Dominguinhos (in memoriam), que tive a alegria de conhecer, foram dois discípulos amados. Patativa do Assaré, Fagner, Elba Ramalho, Sivuca, Oswaldinho, dentre outros, compuseram o rol de amizades nas estradas desse país onde dizia que era sua vida.
E, nesse entremeio, falar de Luiz Gonzaga do Nascimento é, de certo modo, falar de um sertanejo forte, solidário, que compadecido do Assum preto, cantou como gostava, como sabia, com uma voz inconfundível, capaz de superar o som de um dos instrumentos mais altos que existem, a sanfona – e detalhe: a branca, que sempre usou. Foram as aves, os cangaceiros, os padres (o jumento é nosso irmão), a seca, a fome, a chuva, os currais, as meninices, os riachos, os rios, os vales. E, sobretudo, o amor.
Luiz Gonzaga, por mais que, vez ou outra, possam lhe tecer críticas por projetar para o Brasil a ideia de um nordeste uníssono, unívoco, ele, do contrário, fez resplandecer a sua forma de enxergar esse mundo das terras sem fim. Tudo a ele não tinha fim. Por isso, dizer que Gonzaga foi rei não é exceder em elogios, é primar pelo reconhecimento de uma voz e um artista caros demais a este país.
Três letras formam a palavra rei. Quatro a palavra Luiz. O nome, pelo fato de ter nascido no dia de Santa Luzia; Gonzaga pelo padre que o batizou; Nascimento por ter nascido em dezembro. A algumas léguas do Vale do Riachão, chegamos às terras que viram o resplendor do velho Lua cintilar, desde criança, e seguindo os passos da música incutida em seu coração e transparente em seus olhos.
Luiz nunca se despediu de nós, porque as despedidas só acontecem quando não temos nada a deixar. E Luiz deixou muito, bem mais que o suficiente, no escopo do que foi, no bojo do que compôs, na tessitura do que sempre será. Se parecer que esse texto ganhou um tom elogioso demais, assim se o entenda, pois de rei, baião e música, no seu sentido estrito e literal, Luiz entendia. E para os que ainda, mesmo depois de trinta e dois anos de sua passagem, acompanham, fica, sedimentada, a imagem de uma estrela fenomenal, que provavelmente não encontrará substituta tão cedo – ao menos no céu desta região. Até a volta, Lua!
*Rômulo Rossy Leal Carvalho é licenciado em História, escritor e membro da Academia de Letras do Vale do Riachão(PI).
Foto destaque: Internet
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