Crescem as agressões contra crianças e adolescentes na pandemia

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 16.08.2021

“Dar palmada é crime, ignorância e covardia” (Ruth de Aquino)

Conversando com uma jovem de 22 anos, mãe de sua primeira filha de um ano e seis meses, de repente ela retirou a sandália do pé e bateu na mão da criança, porque a menina encontrou no botão do fogão, um objeto para brincadeira e conhecimento. Tomei um susto. Fui veemente na reprovação ao ato. A criança chorou… a mãe disse que batia para que a criança não lhe bata na cara quando estiver adulta…

Na verdade, um ato corriqueiro praticado por muitas mães – a maioria que cuida -, mas que pode trazer problemas irreversíveis para a criança durante sua vida. Pode trazer também problemas para a mãe, tão jovem, com relação ao seu desenvolvimento psicológico na relação com a educação e o cuidado com sua filha e consigo própria.

Durante a pandemia aumentaram as agressões às crianças e aos adolescentes em nosso país. É o que falam especialistas e órgãos que monitoram a violência doméstica. No entanto, sabe-se também que existe um problema grave de subnotificação com relação a essa questão. Especialistas como pediatras, psicólogos, professores e outros, sabem que uma criança que sofre agressão pode conviver com o medo, se apresentar introvertida e manifestar vários tipos de problemas que repercutem em seu organismo pela vida inteira. A pior delas é o trauma psíquico.

Segundo Paulo Endo, psicanalista e professor, os casos de violência podem deixar resultados traumáticos e profundas feridas psíquicas e que “custam muito para chegar a uma atenuação, resultando, então, na impossibilidade de cuidar de si, da própria vida, de estabelecer relações com seu futuro, comprometendo o desejo de viver”. (Jornal da USP).

As agressões geralmente partem dos familiares e pessoas mais próximas, com as quais as crianças e adolescentes mantêm uma relação que deveria ser de proteção e segurança, como tem sido confirmado através de denúncias investigadas pelos órgãos de segurança.

Em entrevista ao Jornal da USP a médica pediatra e coordenadora do Grupo de Atendimento à Violência Infantojuvenil do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Juliana Martins Monteiro, afirma que entre as agressões, “estão a violência física, violência sexual, violência psicológica, a negligência, o bullying e o cyberbullying… excepcionalmente, a criança chega aos serviços de saúde com queixa de violência. Podemos suspeitar dela por meio dos sinais, físicos ou não, pelo olhar e escuta atenta, já que a criança pode se mostrar com medo, muito introvertida ou com alterações no comportamento”.

Especialistas têm expressado suas preocupações com o avanço deste tipo de violência durante a pandemia, que pode ser provocada pelo isolamento proposto à sociedade para combater a doença, pela vulnerabilidade familiar aguçada pelo desemprego, pela violência doméstica preestabelecida e pelo sentimento de poder sobre os filhos.

Muitas pessoas têm manifestado o pensamento de que é impossível educar uma criança sem praticar e até se exceder nas palmadas, e, assim, talvez reproduzam já uma situação vivenciada na sua infância e nem se dão conta que problemas vivenciados como adultos podem ser resultantes de prática agressiva imposta pelos adultos, inclusive os pais, quando criança.

Nem se dão conta de que bater, agredir, violentar uma criança é crime. A lei “Menino Bernardo”, apelidada de lei da Palmada, sancionada em junho de 2014, alterou o Estatuto da Criança para disciplinar o direito de se educar as crianças e os adolescentes sem o uso de castigos físicos, como se tornara corriqueiro na nossa sociedade.

Após a alteração do ECA as famílias que praticarem agressões contra seus filhos poderão ser encaminhadas para programas de orientação educacional, acompanhadas por serviços psíquicos e pedagógicos e até poderão sofrer advertência ou investigações processuais, em casos de agressões mais violentas.

Crianças pequeninas que sofrem violência nem conseguem compreender a lógica da força praticada porque não fazem a relação desta prática com o ato de obediência. O diálogo, a conversa, a compreensão, a atenção e o conhecimento têm demonstrado ser os métodos e instrumentos capazes e principais para dar consistência a uma convivência pacífica, sadia, e promover a formação multidimensional dos seres humanos em processos educativos.

É necessário paciência, persistência e convicção.

A violência, quando praticada pelos pais se reveste de complexidade maior porque os filhos, enquanto crianças, necessitam do carinho, da proteção, da segurança dos pais, sendo os mesmos a primeira grande referência de amor e sustentabilidade para seus filhos.

Como pode crescer uma criança numa família que se alterna entre amor, carinho e agressões aos seus filhos? A criança deve se indagar, quanto à sua capacidade de abstrair alguns sentimentos em detrimento de outros, ou seja, “quando devo amar, o que devo fazer”? Ou,“o que devo fazer para não apanhar ou quando apanho”?

O que esperamos quando cuidamos ou educamos é, sempre, desenvolver na criança a sua capacidade de pensar, raciocinar e decidir, assim preparando o longo caminho de sua caminhada na vida.

A família com a qual a criança vive, especialmente a mãe, o pai, os avós são o espaço privilegiado para o desenvolvimento físico, mental e psicológico dos que ali habitam. No entanto, é preciso desvendar o que acontece nas relações que se estabelecem e denunciar às autoridades quando houver violência doméstica.

Pais que batem nos seus filhos geralmente contam com a aquiescência dos outros membros da família, porque têm a compreensão ainda medieval que o medo impulsiona a obediência e o aprendizado para a vida.

 

“É importante enfatizar, como fazem Azevedo e Guerra (1998, p.25) que “toda a ação que causa dor física numa criança ou adolescente, desde um simples tapa até o espancamento fatal, representam um só continuum de violência. Sendo assim, torna-se necessário defender o direito constitucional de que crianças e adolescentes têm de estar salvas de toda forma de violência, crueldade e opressão para que tenham uma vida digna, enquanto pessoas em situação peculiar de desenvolvimento e enquanto seres humanos”. (in O Impacto da Violência Doméstica…Fabiane e Maria Inês)

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Foto destaque: amab.com.br