Por que a tolerância não é um ato de amor?

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Professor, mestre em educação, membro da Academia Cabense de Letras

A palavra tolerância tem origem no termo latino tolerare que, entre outros sentidos, significa suportar, aceitar. Também significa indulgência. O valor semântico da palavra indulgência está relacionado ao ato de “perdoar os erros cometidos pelos outros; clemência. Demonstração de perdão a um castigo, a uma pena, a uma ofensa” (Dicionário online Houaiss). Dessa forma, o ato de tolerar assume uma verticalidade imposta por um sistema hierarquizado, em que prevalece o normativo e, nesse caso, o que se tolera são as discordâncias àquilo que foi determinado por esse sistema.

Nessa perspectiva, é possível entender a tolerância como um mecanismo de manutenção do sistema dominante, pois é próprio do tolerar o seu caráter conservador (Han, 2019). Pelo fato de a tolerância estabelecer uma relação hierarquizada, o ato de tolerar só é possível para quem se sente superior, para quem se coloca numa condição de exercer certo poder em relação ao outro. Para o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2019), “Deve-se tolerar aquilo que distingue a minoria desse normal, que é diferente dessa regra. A tolerância estabelece, assim, a diferença entre o próprio e o outro. É tolerada não a maioria, mas as minorias, às quais o baixo, o inferior, adere”.

A tolerância não é uma abertura para o outro ou, no máximo, uma abertura bem limitada. Ela não vincula ao seu ato uma recepção dialógica, não concretiza um encontro pleno entre os seres humanos, no qual cada um se encontra no outro numa relação de reciprocidade absoluta, o que Martin Buber denomina de inter-humano. A tolerância também não gera alteridade, pois não se ergue sobre as bases da ética. Aliás, é somente pela ética que podemos assumir um compromisso irrestrito pelo outro ser humano, e isso é a plenitude da alteridade, como propõe o filósofo Emmanuel Lévinas.

A sabedoria dos ancestrais africanos nos ensina, através da palavra Ubuntu, o sentido maior de solidariedade e de amor ao próximo pelo significado que podemos encontrar na expressão “eu só sou se você é”. Ubuntu, literalmente significa “humanidade para com os outros”. Prêmio Nobel da Paz de 1984, o arcebispo africano Desmond Tutu afirma que “Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras, não se sente ameaçada quando outras pessoas são capazes e boas, com base em uma autoconfiança que vem do conhecimento de que ele ou ela pertence a algo maior que é diminuído quando outras pessoas são humilhadas ou diminuídas, quando são torturadas ou oprimidas”.

Por essas razões, a tolerância não se constitui numa abertura de humanidade de uma pessoa para com a outra, pois está na sua tessitura uma verticalidade operada por quem se sente maior e melhor, por quem engendra em si o poder do autoritarismo capaz de determinar quem deve ou não ser tolerado e “aceito”. No fundo, a tolerância é uma expressão da intolerância que, instalada dentro de nós, conduz as nossas atitudes, que margeiam os lados dos rios que vão das impaciências aos atos de violência, contra o diferente, contra o outro, contra o estranho, contra a própria vida. Ou quem ainda não ouviu de alguém: “mas essa pessoa era tão calma, tão maravilhosa, não entendo como pôde praticar tamanha violência”. Quem tolera está mais susceptível a praticas de violências contra seus semelhantes, pois a linha que separa a tolerância da intolerância é do tamanho do fio da navalha que corta, que fere, que mata.

A tolerância jamais se constituirá em um ato de amor, pois implica uma concessão de uma pessoa para com a outra. Traz em si a ideia do “eu permito que…”; há um valor absoluto de que alguém pode perdoar, de que alguém em sua grandeza pode permitir algo para alguém que lhe é inferior, inclusive tolerar que a outra pessoa possa viver. Somente o amor constitui um ato de abertura plena entre os seres humanos, porque o amor é dialógico, é restaurador das nossas humanidades, é afirmação de que sozinho não me faço humano e por isso necessito do meu semelhante para me constituir pessoa. O amor não pode ser tolerância porque não menospreza, não humilha, não desmerece a existência do outro. O amor não negocia vantagens para se afirmar em privilégios desumanizantes. O amor não é tolerância porque é encontro pleno de reciprocidade entre as pessoas e reconhecimento de que, na nossa incompletude, somos seres com possibilidades infinitas de amar.

Para o filósofo alemão Eric Fromm (2008), o amor não é uma coisa, uma substância, algo que podemos possuir ou adquirir. O que existe, de fato, é o ato de amar. Para ele “Amar é uma atividade criadora. Implica cuidado, conhecimento, ajuste, afirmação, (…). Significa trazer à vida, aumentar a vida. É um processo, autorrenovador e autocrescente” (FROMM, 2008, p. 60). O máximo que podemos afirmar é que a tolerância é um tipo de amor baseado no ter, mas nesse caso, já não é amor, mas, absolutamente, um ato de desamor.

HAN, Byung-Chul. Hiperculturalidade: cultura e globalização. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

FROMM, Eric. Ter ou Ser? Rio de Janeiro: LTC, 2008.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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