Marcas Atemporais para um Marco Temporal
Instituto Quotidianus*
Em 28.09.2021
A história dos povos originários brasileiros, das diversas nações indígenas, pode ser contada por musicais populares, livros, canções de protesto e, ainda, pelo modo canastrão equivocado das cunhagens de moedas e cédulas de notas de dinheiro branco. Quem não se recorda da famigerada nota de dez reais, o famoso dinheiro de plástico (polímero), lançada em 2000 em homenagem ao suposto descobrimento de 1500, com homenagem a Pedro Álvares Cabral? Um pouco antes tivemos em 1990 a cédula de 1.000 Cruzeiros Marechal Rondon, estampando dois índios Carajás e sua cultura de culinária, cestaria e moradia em destaque. Antes disso, claro, uma cédula racista durante a ditadura dobre a “evolução das raças”, de 1972, em comemoração ao sesquicentenário da independência, com a nota de 500 cruzeiros mostrando traços grossos que vão se tornando claros e afinados.
Nas atuais moedas de um real, representativas da menor unidade de valor de nosso modelo monetário, ainda encontramos grafismos marajoaras na composição das alegorias da moeda, e, como tudo é simbólico, passamos a mensagem de que a cultura dos povos originários possui pouco ou nenhum valor, pois jamais foi representada pelo maior valor monetário, numa alegoria que invoca salvação branca e descobrimento.
Já no início da década de 1970, o escritor e historiador norte-americano Dee Brown publicava a clássica obra Enterrem meu coração na curva do rio: a dramática história dos índios norte-americanos[1]. Ali, o autor mostrava a história contada na dramaturgia dos filmes consumidos pelo público: “nos velhos tempos em que o mocinho ganhava do bandido e se casava com a mocinha, ninguém era mais bandido que o índio”. Guardam-se na memória os massacres tais como aquele onde morreu o famoso general Custer. Ficaram relegados, porém, aos livros especializados e a documentos de difícil acesso ao grande número de massacres de aldeias índias, como morte a sangue frio de velhos, mulheres e crianças. A obra de Brown procura realizar uma revisão histórica da “epopeia” da conquista do Oeste norte-americano.
Mas o problema das minorias raciais em confronto com interesses alinhados a grupos militares também pode ser bem verificado por aqui. Quando o diretor alemão Werner Herzog estrelou em 1984 seu aclamado filme “Onde Sonham as Formigas Verdes” (Wo die grünen Ameisen träumen), a Constituição de 1988 no Brasil já estava em gestação pelo regime ditatorial que saía de cena a partir de uma abertura “lenta”, “segura” e “gradual”, num Poder Constituinte Originário que viria a ser condicionado e limitado pela normatividade da ditadura e desafiar as tradicionais lições iniciais de Direito Constitucional.
A narrativa de Rubens Valente, presente em Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura[2], ajuda a compreender parte dos elementos centrais em discussão sobre as terras pertencentes aos povos originários, pois os ditadores militares criaram a Guarda Rural Indígena (Grin), treinando “índios para se defender dos ataques dos ‘maus civilizados’ que invadiriam territórios indígenas”. Com o intuito de se apossar das terras indígenas, como supostos “descobridores”, provocaram um verdadeiro genocídio de tribos indígenas.
Por estes motivos, o tema das terras pertencentes aos povos originários é demasiado importante para permanecer exclusivamente sob o talante dos tribunais ou dos portadores de narrativas públicas oficiais, pois tendentes a manipular e sedimentar atuações pautadas pela lógica do capital, a favor do agro e dos latifúndios.
E o referido tema possui história antiga e recente. Antiga, pode-se verificar da tese do “indigenato” a partir do labor do antigo Juiz do STF, João Mendes de Almeida Júnior (1856-1923)[3]. Mais recente, dois julgamentos se destacam. O primeiro trata da demarcação das terras indígenas “Raposa Terra do Sol”, por meio da Pet 3.388/RR, de 2009, perante o Supremo Tribunal Federal. Daqui, aliás, denota-se uma série de determinações sobre a convivência entre aspectos constitucionais e o usufruto por parte dos povos originários. O segundo, mais atual e de fundamental importância, aborda o caso do chamado “marco temporal”, sob julgamento perante o mesmo Supremo Tribunal Federal no caso do RE 1.017.365/SC.
Este RE 1.017.365/SC cuida de uma Ação de Reintegração de Posse ajuizada pela Fatma (Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina), em face da Funai. Na discussão, disputa-se uma área de 80 mil metros quadrados localizada na Linha Esperança-Bonsucesso, distrito de Itaió. O fundamento do pedido compreende a suposta posse mansa, pacífica e ininterrupta por mais de sete anos, em área que compõe uma gleba maior da Reserva Biológica do Sassafras, mas em 2009 (ano de propositura da inicial), quando teria ocorrido uma suposta invasão de 100 índios.
A tese central em disputa é a hipotética existência de um “marco temporal”, algo que busca restringir os direitos constitucionais dos povos originários. A partir dessa interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos originários só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição de 1988. Alternativamente, se os povos originários não estivessem na terra, teriam que comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material na mesma data (5 de outubro de 1988).
A referida tese do “marco temporal” é perversa por diversos motivos. Primeiro porque legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante o período da Ditadura Militar. Além disso, ignora o fato de que os povos indígenas, até 1988, eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar judicialmente por seus direitos. E é por tudo isso que os povos originários vêm dizendo em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988!”. E com total razão!
Conforme observado por Bruno Cerqueira, as terras indígenas existentes no Brasil correspondem a quase 13% do território nacional, e, neste ponto, a ignorância sobre essa realidade fática e jurídica é considerável. Faz-se relevante resgatar o tema de forma adequada. Para tanto, talvez seja necessário indagar em que medida a constitucionalização do indigenato[4] parece ter sido desprezada por uma parte da jurisprudência da Suprema Corte quando decidiu criar um “marco temporal” para a aferição da presença e da ocupação das comunidades indígenas nas suas terras ancestrais[5].
Ainda conforme Bruno Cerqueira no estudo já citado, devemos a João Mendes no STF a construção da teoria do indigenato brasileiro. Foi ela exposta, inicialmente, em três conferências proferidas na Sociedade de Etnographia e Civilisação dos Indios de São Paulo, em 1902, quando Mendes Junior teorizou no que consistiria o indigenato: “Afinal, o que constitui esse instituto jurídico, altamente citado, mas pouco conhecido e que perfaz o edifício dos direitos dos índios às terras em que habitam? As respostas, as temos na leitura do trabalho publicado em 1912: Os indígenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos. As três preleções na tal sociedade etnográfica compõem uma defesa acérrima dos direitos políticos dos índios no Brasil, esclarecendo os inumeráveis padecimentos que a ‘raça índia’, como então se dizia, sofreu, desde que os avoengos lusos aportaram na Terra de Santa Cruz. O texto é prenhe de dados históricos sobre as idas e vindas, as contradições profundas que a legislação régia portuguesa reservou ao assunto ‘índios’ nos três séculos colonizatórios”.
Em suma, a teoria mendesiana sobre o Indigenato, relacionada à relação dos povos originários com as terras que tradicionalmente habitam, não comporta limitação por meio de “marco temporal de 1988”, especialmente porque calcada na historicidade e nas atrocidades sofridas por todos os que aqui estavam e foram dizimados num processo bárbaro de invasão para imposição de valores por parte dos invasores, homens brancos com armas na mão.
Diante disso, há uma opção ao Supremo Tribunal Federal: garantir os direitos dos povos indígenas afastando a inconstitucional tese do marco temporal. Para tanto, a questão deve ser interpretada de modo a englobar toda a historicidade dos povos originários, sob pena de concorrer para mais uma brutalidade dissociada de seu papel constitucional: proteger direitos fundamentais de minorias. Ou é essa a posição da Suprema Corte ou se dará continuidade a uma destruição “lenta”, “segura” e “gradual”, tal como aquela diagnosticada por Dee Brown há mais de cinco décadas no hemisfério norte, ou como narrado através das moedas nacionais, que só reconhecem o início da história dos povos originários antes de 1988 para humilhá-los com pouco valor ou através de mentiras cunhadas no vil metal.
*Texto subscrito pelo Instituto Quotidianus — instituto de Estudos Jurídicos Críticos, com atuação interinstitucional —, sob a responsabilidade de Denival Silva, Alexandre Bizzotto, Airto Chaves Jr., Danilo Varconcelos, Tiago Felipe e Thiago Aguiar de Pádua.
[1] BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio: a dramática história dos índios norte-americanos. Tradução de Geraldo Galvão Ferraz e Lola Xavier. Porto Alegre/RS: L&PM Pocket, 2015.
[2] VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[3] CERQUEIRA, Bruno da Silva Antunes. A demarcação territorial indígena e o problema do “marco temporal”: o Supremo Tribunal Federal e o Indigenato do ministro João Mendes de Almeida Júnior (1856-1923). Monografia. Centro Universitário d
[4] Teoria do jurisconsulto João Mendes de Almeida Junior – em 1934, a qual elevou a um espaço simbolicamente quase “sagrado” de um capítulo inteiro da Constituição de 1988 reservado aos “Índios”.
[5] A data de 5 de outubro de 1988 (dia da promulgação da Carta Cidadã) foi firmada no âmbito do julgamento da chamada Petição n. 3.388, do Estado de Roraima, sobre a demarcação territorial da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Agora, como se vê, tem ela sérios reflexos em outras demandas.
Artigo publicado originalmente no portal da revista Consultor Jurídico.
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