Violência doméstica e pobreza, vínculo que não se quebra facilmente

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 25.10.2021

Segundo informações do AzMina, durante a pandemia, no Brasil, uma mulher é morta a cada 9 horas.

Para mim, a violência doméstica sempre foi uma questão observada, nunca vivenciada. Isso é o que sempre imaginei, mas agora eu tenho dúvida, após assistir à série americana Maid.

A série conta a história de Alex, uma mulher, filha, mãe e envolve uma criança que antes de completar três anos de idade é obrigada a sair de casa no colo da mãe, no meio da noite, após uma seção de violência psicológica praticada pelo seu pai, em busca de apoio nos abrigos para vítimas de violência doméstica do estado. A mãe, que também é filha, se vê desamparada do apoio da própria família, pois passou pela mesma situação quando criança. Cresceu em um ambiente marcado pela violência, pelas drogas, bebidas e abusos, isso tudo em meio a relação complicada com uma mãe, uma artista local, taxada por alguns como louca e bipolar.

Senti vontade de refletir um pouco a partir da produção cinematográfica tão bem conduzida, tratando de uma questão corriqueira no mundo e no nosso país. Na série, a protagonista não chega a ser agredida fisicamente. Já aqui, no Brasil, cansamos de casos extremos de feminicídio.

O Brasil é o quinto país do mundo com a maior taxa de feminicídio. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a média é de 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres. Apenas no primeiro semestre de 2020 foram registrados 648 feminicídios no país, 1,9% a mais do que no mesmo período em 2019. 

Neste tempo de pandemia milhões de mulheres vítimas de violência doméstica ao redor do mundo estão vivendo as 24h do dia presas com o seu abusador dentro de casa. Segundo informações do AzMina, durante a pandemia, no Brasil, uma mulher é morta a cada 9 horas.

A violência doméstica no Brasil até parece uma pandemia dentro da pandemia do coronavírus, como afirmam alguns estudiosos que lidam diariamente com dados referentes a tão grande enfermidade social.

A lei Maria da Penha  (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) define cinco tipos de violência doméstica e familiar: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

Mas algumas questões chamam a atenção na série Maid.

Em primeiro lugar, as mulheres não conseguem enxergar os tipos de violência que estão incluídos na violência doméstica de forma sub-reptícia.

Ao chegar ao sistema público em busca de auxilio, Alex não se sentia vítima de violência, por não ter sido agredida fisicamente, pois não apresentava as marcas no seu corpo.

É que a violência psicológica nem é reconhecida por alguns tribunais porque está carregada de subjetividades e sentimentos envolvidos nas relações afetivas entre homens e mulheres ou pessoas que formam um casal afetivo.

No entanto, para ter apoio é necessário ter o sinal físico da violência atestado por instituições como delegacias, IML, cujas funções na sua maioria são exercidas por homens comungantes da premissa cultural machista que mulher é um ente de propriedade dos homens, cabendo aos donos o direito do maltrato.

Em segundo lugar, as mulheres, apesar de encontrarem apoio nos poucos abrigos existentes mantidos pelo poder público, precisam encontrar trabalho e, para trabalhar, deveriam deixar a criança na creche. Mas não existem creches públicas. Mulheres abusadas ou violentadas carregam seus filhos mundo afora pela vida toda, sozinhas e geralmente com o apoio de outras mulheres.

Há um grande déficit de creches no país. Em 2017 a população de crianças de 0 a 3 anos era de 11.817.801 (INEP). Os dados do censo escolar de 2019 apontaram um crescimento de 4,4% nas matrículas em creches da rede pública, ou seja, foram matriculadas 2.456.583, cerca de 100 mil a mais que no ano anterior.

Em 2019, 3.755.092 crianças de 0 a 3 anos foram matriculadas em 71,4 creches públicas e privadas no Brasil. Do total, 45,3% são em unidades públicas e 34,6% em creches particulares.

A população de 0 a 3 anos no Brasil era de 11.817.801 em 2017 (INEP). O  Plano Nacional de Educação (PNE) tem como meta colocar pelo menos 50% das crianças de até 3 anos em creches. O primeiro prazo venceu, sendo adiado para 2024.

A creche pública é uma necessidade no país, para que as mães, sobretudo as mulheres chefes de família, tenham condições de acesso ao trabalho com dignidade e para o próprio crescimento econômico do país.

“É preciso ter creche pública de qualidade para todos. Assim, as crianças se desenvolvem melhor e as mães continuam suas trajetórias profissionais. Todo mundo sai ganhando: com mais mulheres trabalhando, a economia cresce”, calcula Bia Nóbrega, psicóloga pela Universidade de São Paulo (USP)

A terceira questão colocada pela séria Maid trata das formas de trabalho das mulheres que sofrem violência doméstica, mas precisam prover as necessidades básicas dos filhos. Geralmente lhes são oferecidas atividades que não exigem nenhuma qualificação, como fazer faxinas em ambientes insalubres, ou semelhante, com jornadas extensas, a baixo custo, subtraindo da mulher qualquer possibilidade de qualificação profissional.

Numa situação de pobreza absoluta se torna mais difícil quebrar o ciclo da violência.

Por último, a história real relatada em forma de série chama a atenção para o fato que a violência doméstica atravessa gerações de uma mesma família sem que as mulheres se deem conta do que está acontecendo com suas vidas e na vida dos seus filhos, e se crie a consciência de que é preciso criar condições objetivas para quebrar o ciclo de abuso e violência.

Sabemos que crianças e adolescentes quando vítimas de situações de violência doméstica sofrem efeitos negativos a curto e longo prazo no que se refere à saúde mental, física e para o seu desenvolvimento social.

“As consequências da violência nas vítimas de agressão são severas e múltiplas, colocando em exposições as crianças e adolescentes que estão no contexto intrafamiliar, prejudicando o bem-estar e a qualidade de vida dos envolvidos, afetando emocionalmente, socialmente, sexualmente, cognitivamente, comportamentalmente as vítimas e as sequelas destas agressões podem permanecer ao longo da vida adulta”. (Curto & Paula, 2009; Garbin et al.. 2012; Hohendorff et al.. 2012; Sá et al.. 2012 in  Reflexos da violência doméstica em crianças e adolescentes)

Convivi com muitas mulheres que pareciam entender que uma situação de violência geralmente gerava um benefício na “relação afetiva”, acompanhada de pedido de perdão e compensada algumas vezes com outros tipos de atenção, o que facilitava também a ocultação das marcas das violências psicológicas em seus vários tipos.

É necessário denunciar as malvadezas que acontecem no interior do que muitas vezes é chamado lar.

A série nos ajuda a pensar que é preciso desfazer esse mito de família concebida como uma instituição intocável, para que os atos de violência familiar permaneçam nas sombras, geralmente amparados pela visão religiosa e pela ganância. É necessário denunciar as malvadezas que acontecem no interior do que muitas vezes é chamado lar.

Para muitos, o diagnóstico de violência doméstica ainda é difícil, porque é preciso acreditar nas vítimas (mulheres e crianças) e entender os outros condicionantes que vão além da palavra que destrói a alma e da arma que produz o feminicídio.

O mais esquisito de tudo isso é que os homens, na sua maioria, não se sentem responsáveis pelos filhos.

O mais importante é que redes de proteção formadas por mulheres vêm surgindo com regularidade, oferecendo as ações de proteção necessárias, independente do poder público. Talvez esteja aí nascendo uma grande força.

Maid, uma série para se refletir sobre o que acontece no nosso cotidiano.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Internet