As cinzas das florestas brasileiras alertam que “o tempo está acabando”
Marina Rossi/ El País
Em 05.11.2021
Artistas pintam em São Paulo imenso painel com mistura feita com tinta e 200 quilos de cinzas colhidas após queimadas na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado e na Mata Atlântica
Em uma rua deserta de pessoas, onde somente os carros passam pela via larga, escoltada de um lado por grandes galpões e, do outro, pela linha do trem, uma imensa ampulheta lembra que “o tempo está acabando”. Ali, no chão de um desses galpões, a mensagem foi pintada com uma mistura de tinta branca e cinzas. São os restos da floresta Amazônica brasileira, do Pantanal, do Cerrado e da Mata Atlântica, que arderam em chamas nos últimos anos, deixando para trás o pó cinza escuro do que virou carvão. Foi com essas cinzas que artistas criaram o imenso painel que alerta para as mudanças climáticas.
“Eu estou incomodado com a normalização que é viver em um país em chamas”, explica Thiago Mundano, que se intitula artivista e é um dos criadores do projeto Cinzas da Floresta. “A queimada das florestas é algo que vem de décadas, mas o Governo Bolsonaro é muito simbólico quando falamos sobre isso”. Enquanto pinta parte do painel, Mundano explica que a ideia era chamar atenção para o tema durante a COP26, a Conferência do Clima que ocorre até o dia 12 em Glasgow, na Escócia.
O projeto Cinzas da Floresta começou em julho, quando uma expedição partiu de São Paulo para a Amazônia de carro, para buscar os restos das queimadas. O roteiro passou ainda pelo Pantanal, pelo Cerrado e pela Mata Atlântica, totalizando mais de 10.000 quilômetros percorridos ao longo de 24 dias de expedição. “É assustador o que vimos”, diz Mundano. “Como fomos de carro, pudemos assistir de perto à devastação”. Ao todo, mais de 200 quilos de cinzas foram coletados.
A ampulheta pintada na semana passada por cerca de dez artistas é uma das obras que resultaram da expedição. Outra foi terminada há cerca de 10 dias em um prédio no centro de São Paulo. Ali, em uma parede de mais de mil metros quadrados, a figura de um imponente brigadista foi pintada com a mesma técnica. O painel é uma releitura do quadro O lavrador de café, de Candido Portinari. O trabalho foi realizado pelos artistas André Firminano, Mundano, Quinho e Fe Iskor, e alerta para os incêndios rotineiros e muitas vezes criminosos que o bioma brasileiro vem sofrendo.
O painel foi feito a partir da figura real de um brigadista que vive na Chapada dos Veadeiros, parque na região centro-oeste do Brasil cujo último grande incêndio ocorreu em setembro. Na obra, que levou 16 dias para ficar pronta, um homem de rosto cansado segura uma enxada com uma mão em frente a um toco de árvore cuja copa já foi queimada. No chão, um megafone, um dos objetos símbolo do ativismo, e, logo abaixo, o esqueleto de um jacaré, morto e seco pela queimada. Do outro lado, um grilo simboliza o desequilíbrio ambiental, representando a peste em monoculturas. Uma ampulheta lembra do tempo, que chega ao fim.
A técnica de usar as cinzas para pintar não é novidade. “Não inventei nada”, diz Mundano. “Há mais de 20.000 anos os homens das cavernas pintavam com carvão.” Mas o resultado é grandioso. A ideia agora é espalhar pela cidade outros trabalhos a partir das cinzas. Um kit com porções de cinzas dos quatro biomas (Amazônia, Cerrado, Pantanal e Mata Atlântica) está sendo distribuído para alguns artistas. Além das obras, o filme Cinzas da Floresta, com direção de André D’Elia, e uma exposição agendada para fevereiro, também serão produzidos com o material da expedição.