Mais esperto do que o Iphan
Jénerson Alves*
Em 12.11.2021
Eu devia ter uns 10 anos. Como de costume, assistia à TV Cultura, com programas divertidos e educativos. A certa altura, entrou o sinal local dando início ao programa ‘Cantoria na TV’. Fiquei impressionado com dois homens que cantavam tocando um instrumento. “Não é uma música comum, pois não há aquelas infinitas repetições como nas músicas tocadas na rádio”, pensei.
Movido pelo som da televisão, meu pai se aproximou de mim e explicou: “Eles são cantadores repentistas. Tudo o que estão cantando aí é feito na hora”. Confesso que, por um momento, fiquei tentado a duvidar; mas eu nunca ouvira meu pai mentir. Devia ser verdade, mesmo.
Depois de um tempo, descobri que aqueles dois homens que cantavam na TV eram os repentistas Rogério Meneses e João Lourenço (os mesmos da foto, diga-se de passagem). O instrumento, claro, é a viola. Não é o mesmo tipo de viola que acompanha os sertanejos gaúchos, por exemplo. O pinho dos cantadores nordestinos tem sete cordas e afinações específicas.
Contudo, mais do que a musicalidade, o que impressiona é a poética. Diferentemente de outras manifestações do repentismo, o violeiro do Nordeste não se limita a “cantar em versos”. Suas produções são marcadas por lirismo, informações, chistes, figuras literárias, enfim. Tudo isso em estilos variados e sílabas variadas (com predominância nas redondilhas maiores e decassilábicos).
Lembrar dessa história me emociona. Essa foi a gênese da minha admiração e do meu apreço ao repente. Fico mais feliz ainda ao saber que, na quinta-feira (11.11.2021) enfim, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu o repente como patrimônio cultural do Brasil. Ora, aos 10 anos de idade eu já sabia que a arte da cantoria é um bem imaterial de valor incalculável! Será que sou mais esperto que o Iphan?
Brincadeiras à parte, meu desejo é que este reconhecimento se transforme em políticas públicas efetivas de salvaguarda a esses fazedores de cultura. Que cada um de nós, poetas populares, também reconheçamos nosso papel no intuito de valorizar e preservar essa tão rica tradição. E que as novas gerações, assim como eu, possam se deleitar com os versos improvisados dos aedos nordestinos, que eternizam emoções.
*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.
Foto destaque: Magda Silva/Secult