Harald Schistek, um austríaco que aprendeu a conviver com o semiárido
Mirtes Cordeiro*
Em 13.12.2021
“A Convivência com o semiárido exige igualdade de condições na partilha da vida entre os humanos e os demais seres vivos que habitam o bioma caatinga.” Assim se referia Haroldo, como era conhecido popularmente por homens, mulheres e jovens que praticam a agricultura familiar na região de Juazeiro, na Bahia.
A quinta-feira (09 de dezembro) foi marcada pela morte abrupta de Harald Schistek, nascido em Viena, na Áustria, no dia 13 de janeiro de 1942, em plena Segunda Guerra Mundial. Radicado no Brasil na década de 70 do século passado, dedicou 45 anos da sua vida a estudar e ensinar como se conviver com o semiárido brasileiro.
Teólogo pela Universidade de Salzburgo, Áustria, e agrônomo pela Universidade de Agricultura de Viena e pela Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco, na Bahia, escolheu o município de Juazeiro para fazer moradia com Dulce, sua esposa, e Débora, sua filha. Juntamente com o bispo D. José Rodrigues e outros companheiros fundou, em 1990, o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPPA), uma ONG que tem como objetivo promover ações “com soluções eficazes, que respeitem as características do povo e das terras da região, descobrir os recursos e as possibilidades existentes, reconhecer que é uma região diferente de outras regiões brasileiras, onde se pode viver bem, convivendo com as diversidades climáticas”. (IRPAA)
Durante muitos anos Haroldo foi coordenador da entidade, atuando em vários estados. Em alguns momentos foi presidente, tendo sua vida dedicada às famílias que praticam a agricultura familiar, às famílias pobres das periferias e à busca incessante de tecnologias e formas de vida que pudessem romper com o estado de pobreza provocado por compreensões políticas historicamente deformadas, a partir do processo de colonização.
Hoje, rendo a minha homenagem a este grande amigo que conheci em 1974, prestando assessoria aos projetos apoiados pela MISEREOR (obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha) e, posteriormente, como membro do UNICEF, com o qual participei de muitos trabalhos realizados no semiárido em vários momentos da minha vida.
A melhor forma de homenageá-lo é tornar público pequenas porções de sua sabedoria, fruto de sua prática, sobretudo neste momento em que o país volta ao estado de pobreza que se assemelha aos momentos vivenciados pelas famílias do semiárido brasileiro durante o longo período de seca na década de 1990.
Sobre a região:
“Não adianta, como feito em Juazeiro-BA, desmatar dezenas de milhares de hectares da caatinga, para transformar em monocultura de cana de açúcar, sob o pretexto de produzir álcool combustível. (Produzem também açúcar). Destrói primeiro o bioma nativo e para plantar cana de açúcar para produzir álcool, absurdamente chamado depois de “biocombustível”, que nada tem de “bio”, porque ao fim, libera mais CO2 em todo seu ciclo de produção, colheita, produção e beneficiamento, do que economiza na queima nos motores automotivos, além de destruir um bioma tão frágil como é da caatinga, com sua grande biodiversidade”. (H.S. in Tecnologias Apropriadas)
Sobre o conceito de Convivência:
“A Convivência com o Semiárido procura conhecer a base climática e geológica da região, conhecer sua história à partir das populações pobres, se aprofundar na sociologia da região, conhecer as causas da situação injusta da distribuição das terras, se aprofundar nas tradições e cultura nativas, analisar a situação política para entender a situação da pobreza e exploração, analisar a educação como fator de opressão e exclusão, conhecer o saber popular em relação à agricultura e caatinga, conhecer práticas agropecuárias de regiões climaticamente homólogas e suas espécies vegetais e animais e adquirir uma base de engenharia para construções apropriadas para o SAB”. (H.S. in Tecnologias Apropriadas, 30 de junho de 2021)
Sobre tecnologias para proteger o meio ambiente:
“A restituição de sistemas ecológicos naturais é a forma mais barata e rápida de retirar os excessos de gás carbônico da atmosfera. Querer reduzir as emissões somente evitando a queima de combustíveis fósseis, não seria suficiente. Nesta proposta se encaixam os trabalhos do IRPAA, no Recaatingamento, iniciados em dezembro de 2009: restituir áreas degradadas, em estado de desertificação, introduzindo árvores nativas do bioma semiárido. É muito bonito observar como com a firmação de plantas arbóreas, voltam também a vegetação rasteira, arbustos. Num espaço de poucos anos a área é revitalizada pela chegada de invertebrados, anfíbios, répteis e pequenos mamíferos. As aves chegam primeiro. O Recaatingamento se baseia em todos os princípios de Tecnologias Apropriadas, acrescentadas pelas Tecnologias Sociais e usa os conhecimentos nativos sobre o bioma, a agricultura. Possui a união entre saber popular e saber científico, está baseada unicamente na força de trabalho das populações locais, favorece a organização das comunidades, fortalecendo-as contra inimigos externos, defendendo a caatinga contra desmatamentos, extração de madeira e caça”. (H.S. IRPAA)
Sobre a Agricultura Familiar:
“O velho e ultrapassado argumento que a Agricultura Familiar seria improdutiva, incapaz de alimentar um povo inteiro, cai logo por terra, sabendo, como já dito acima, que 70 % da alimentação na mesa dos brasileiros tem origem na agricultura familiar. E praticamente sem apoio oficial. Se tiver um pouco mais de apoio, pesquisas dirigidas para as Tecnologias Sociais da Agricultura Familiar, dentro de poucos anos poderia abastecer 100 % da população”. (H.S.)
Sobre Metodologias de Trabalho:
“A demonstração do foco em Pedagogia da Convivência aconteceu em 1992 com a realização da primeira Escola de Formação de Agricultores/as, de duração de 15 dias, em sistema de internato. A Escola de formação permaneceu ativa até os dias da ante pandemia, trabalhando em formação intensiva, que abrange praticamente todas as disciplinas acadêmicas, das ciências naturais e humanas, aplicada do nível da população rural. A atuação não deve focar a difusão de tecnologias. Somente mais tarde o IRPAA se entendeu como entidade pedagógica. Enquanto entidade que orienta a formação, trabalha até hoje a “Pedagogia do Semiárido” ou “Pedagogia da Convivência”. (H.S. em entrevista para biografia)
Sobre a escassez de Água no Semiárido:
“A questão da água tem que ser vista em termo mais amplo, de uma forma integrada. Na realidade atual, com suas diversas limitações, somente a conjugação de diversas origens de abastecimento oferecerá a segurança der ter água o ano todo e todos os anos. Um projeto de abastecimento de água e um programa de construção de cisternas são sempre bons pontos de partida para discutir o contexto geral da vida da população. No entanto, um trabalho que vise unicamente o abastecimento de água da população e se esquive dos outros problemas não solucionados, como a produção, comercialização, acesso à terra, terá um alcance muito limitado.
O início do trabalho deve ser precedido por um levantamento com a participação popular, para conhecer os recursos hídricos existentes e a quantidade de pessoas e animais com uma oferta de água deficiente. Este procedimento levanta dados aproximados importantes, ajuda à população se inteirar sobre a situação do abastecimento de uma região e leva, em condições ideais, a um engajamento ativo no planejamento e execução das medidas” (H.S.in Cartilha-construção de cisternas)
Estudioso da região, Haroldo buscava conquistar a todos para compreender o bioma caatinga, apresentando suas belezas originadas nas plantas, nos animais, nas riquezas minerais como os lajedos azuis de Curaçá e a variação do por do sol no rio São Francisco
Sempre munido de máquina fotográfica, nos premiava com lindas fotos das flores que ressurgiam quando o solo ressequido recebia as primeiras águas das chuvas, das árvores com seus vários tons de verde, dos juazeiros com suas copas abrigando os mais variados tipos de caprinos.
Dedicou sempre uma atenção especial à formação dos jovens que fazendo seus estudos nas escolas técnicas da região, eram acolhidos para a prática de estágios no conceito da Convivência no Centro de Formação Permanente, construído na Várzea da Cruz-Juazeiro.
E ressaltou sempre a importância da mulher na constituição da família, da economia e da cultura do semiárido, haja vista a participação feminina na produção de geleias, doces, sucos e outras iguarias na Cooperativa de Curaçá, Uauá e Canudos (Coopercuc).
Sobre D. José Rodrigues, o bispo parceiro desde a primeira hora em travessia difícil nos tempos da ditadura, assim se expressou em entrevista, quando do seu falecimento, em 09 de setembro de 2012: “Religião e fé não podem se limitar ao ambiente da Igreja. É preciso enxergar a dimensão política, as causas das injustiças e desigualdades sociais… este foi o lema que conduziu a vida religiosa do bispo emérito de Juazeiro, D. José Rodrigues de Souza, que atuou no Nordeste”.
Esse era Harald, o austríaco, um homem branco, alto, de olhos azuis, Haroldo para os pobres do semiárido, com os quais se misturou criando sua própria roça no Vale do Salitre, e que uma vez cunhando em seus cadernos de anotações o termo “Convivência com o semiárido” – quando todos tratavam da “convivência com a seca” – teceu inúmeras redes de articulações, parcerias e saberes em busca da vivência com dignidade.
Continuaremos caminhando por suas trilhas em busca de um mundo com justiça e sem desigualdade.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Mirtes, bela homenagem a Haroldo explicitando pequenas “porções de sua sabedoria” sobre a caatinga e o semiárido nordestino.