Quem tem fome não pode esperar

Por

Maria Victória Benevides e Fábio Konder Comparato*

Em 13.12.2021

A cena de gente catando “restos dos ricos” no caminhão de lixo, para matar a fome, é um retrato atroz da desigualdade em nosso país. Sabemos que o Brasil tem uma história trágica de escravidão, dominação e apropriação dos bens comuns pelos senhores das terras e das águas, das finanças e dos privilégios. Apesar de bravas resistências, ainda estamos bem longe de um padrão aceitável de democracia e República.

A democracia contemporânea exige a soberania popular e o estado de direito com pleno respeito aos direitos humanos, cuja matriz é o direito à vida. Logo, o acesso à saúde e à alimentação adequada é direito fundamental, presente na Constituição. Mas hoje, além da criminosa omissão durante a pandemia, o governo insiste na ficção de que somos o “celeiro do mundo” e o “agro é pop”, enquanto deixa à míngua os miseráveis, os pobres que viraram miseráveis e a classe média que virou pobre. Pobres e famintos.

A grande seca de 1870 matou cerca de meio milhão de brasileiros e levou a desolação às melhores áreas agrícolas do Nordeste. Estamos vivendo, em 2021, a grande fome, até mesmo nas ricas cidades do Sudeste. Isso, sendo o Brasil o segundo maior exportador de alimentos do mundo!

Somos atingidos pela tempestade perfeita, com o desmonte sistemático e deliberado de políticas sociais, inclusive as básicas de segurança alimentar. Além da crise hídrica e de energia, da destruição ambiental (que enfraquece a agricultura de subsistência), da inflação, do desemprego, da população morando nas ruas e da tensão causada por novas cepas do coronavírus, a fome avança devastadoramente.

Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 19 milhões de brasileiros estão famintos e mais de 100 milhões não sabem se terão o que comer no amanhã de incertezas. Pesquisa recente do Dieese revela como essa situação se aprofunda, pois os preços da cesta básica continuam aumentando em todo o país, superando a parcela média do tal “Auxílio Brasil” (substituto do Bolsa Família), que não comprará nem metade da cesta atual.

Mãe desempregada, Sandra Maria de Freitas fala de sua luta diária: “Quando o caminhão passa cedo, dá para pegar coisas boas, pão e mortadela, tá tudo mofado, a gente raspa e come. Tem que desinfetar, mas o gás tá muito caro e com álcool já fui parar no hospital.” Como Sandra, são as milhares de “mães solo” o maior contingente das vítimas da fome. São elas que ficam no aguardo de ossos e pelancas. Com sorte conseguem pé e pescoço de galinha. E as que contam com apoio de ONGs estão nas filas de marmita – “um luxo”, dizem, agradecidas.

O consumo de proteína está cada vez mais raro até para famílias de classe média: o preço médio de 1 kg de carne foi multiplicado por três nos últimos dez anos. E como afirma José Graziano da Silva – ex-diretor da FAO e atual diretor do Instituto Fome Zero –, “crianças que passam fome antes dos 5 anos, se sobreviverem, levarão a marca de desnutrição para o resto da vida, não terão desenvolvimento intelectual e motor normal. Estamos, portanto, condenando o futuro de milhões de brasileiros”.

O que o governo e a sociedade civil estão esperando para agir imediatamente, antes do colapso previsível, com saques, morticínio e violência de todo tipo contra miseráveis e famintos? Esperamos uma réplica sinistra do “caso Manaus”, exemplo típico de omissão e abandono da população no auge da pandemia? Esperamos a condenação do país por crime contra a humanidade?

Quem tem fome não pode esperar. E não devemos apostar em milagres para a eleição em 2022. A hora é agora, de urgência urgentíssima: denunciar a omissão do governo federal e do Congresso, exigir providências relativas a um auxílio emergencial decente para todos que dele precisam (e não apenas para os empregados), mobilizar a sociedade. Os governos estaduais e municipais podem enfrentar a incapacidade e a omissão do principal mandatário ativando conselhos e subprefeituras, programas de transferência de renda, enfim, reativando o refrão do poeta negro Solano Trindade: “Tem gente com fome, dá de comer!”

Isso significa apoio às cooperativas de agricultura familiar, à distribuição de vales alimentação e cestas básicas, à reabertura de restaurantes populares, ao reforço dos Bancos de Alimentação e da merenda nas escolas, aos programas que atendam povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, a uma especial atenção para as ditas comunidades (favelas e outras) e para os que estão morando nas ruas. Necessário, ainda, o encaminhamento de pessoas que hoje vão aos postos de saúde com diagnóstico óbvio: a desnutrição severa.

É evidente que a grande fome será apenas mitigada com essas ações urgentes, pontuais e solidárias. Para o enfrentamento de suas causas, diante da desigualdade e da pobreza extrema, são indispensáveis reformas estruturais, econômicas, sociais, políticas e ambientais, enfim, um projeto de desenvolvimento sustentável que inclua a reforma tributária e a reforma agrária, sempre adiadas, além de políticas avançadas de educação e saúde para a imensa maioria dos brasileiros – porque a minoria já as tem.

Todos nós, que contamos com o conforto de três refeições por dia, somos também responsáveis. A mobilização deve abranger, além dos aguerridos movimentos sociais e populares (com destaque para o MST e a Cufa), a imprensa, as igrejas, as universidades, entidades de peso, como OAB, ABI, SBPC, CNBB e sindicatos. Os empresários devem ser chamados à responsabilidade na promoção de empregos, mesmo provisórios, no compromisso de evitar demissões e no combate à alta absurda nos preços de alimentos.

As festas de final de ano estão chegando. Justiça e Paz na terra, solidariedade ativa com comida para todos, agora e sempre, assim seja.

*Maria Victoria de Mesquita BenevidesÉ socióloga e cientista política, professora titular aposentada da Faculdade de Educação da USP, membro da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos Comissão Arns).
*Fábio Konder ComparatoÉ advogado, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos (Comissão Arns).
Artigo originalmente publicado na revista Piauí, 10/12/2021

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.