A eleição presidencial, os candidatos de oposição e as Forças Armadas
José Eduardo Faria*
Em 16.01.2022
Ao entrar no último ano de seu mandato rodeado por generais e após ter indicado militares de várias armas e patentes para exercer seis mil cargos de servidores civis na administração pública, inclusive permitindo-lhes acumular salários e ganhar acima do teto constitucional, o governo Bolsonaro suscita análises e principalmente, indagações. Uma das perguntas obrigatórias que será levantada na campanha eleitoral envolve justamente as Forças Armadas.Diante da mediocridade desse governo, que desprezou a Constituição, afrontou o Judiciário, destroçou o ensino público, negou o conhecimento científico, comprou o apoio de fardados concedendo-lhes vantagens previdenciárias e sobrepôs o grupo familiar ao sistema partidário, as corporações militares terão hoje uma imagem melhor do que a que tinham antes de 2019, quando se limitavam a exercer suas atribuições funcionais específicas nas áreas de defesa e segurança nacional? Dois fatos históricos fundamentam essa indagação.
O primeiro foi a gestão da ditadura militar, não só no campo econômico, mas, também, no plano institucional. A economia foi marcada pelo delírio da transformação do Brasil numa grande potência e pelo fracasso do 2º Plano Nacional de Desenvolvimento. Formulado na gestão do general Geisel (1974-1979), esse plano enfatizava a substituição do setor automotivo pelo setor petroquímico como base do desenvolvimento, mantendo o petróleo como matriz energética e subestimando a escalada de preços então promovida pela Opep. Em termos institucionais, proliferaram denúncias de assassinatos e desaparecimentos, casos comprovados de prisões e torturas, cassações de mandatos e o desprezo pelas garantias públicas. Por isso, ao término dos vinte anos de ditadura, a imagem das Forças Armadas estava no chão – maculada e desacreditada.
O segundo fato está relacionado ao período que se seguiu com a redemocratização. Ele foi marcado pela promulgação de uma nova Constituição, pelo equilíbrio institucional e pela estabilidade política, o que levou governos democráticos a apresentarem bons resultados em matéria de estabilização monetária, reformas estruturais e crescimento, especialmente após a segunda metade da década de 1990. Do ponto de vista externo, isso fez com que o Brasil passasse a gozar de prestígio e influência nos organismos internacionais – uma conquista exponenciada pela capacidade de formulação diplomática do Itamaraty a partir da ênfase ao desenvolvimento como fonte de poder na ordem mundial, da estreita vinculação da política externa às aspirações nacionais e da adequada projeção dos interesses brasileiros no plano externo.
Desse modo, se a imagem das Forças Armadas esteve no chão nos tempos da ditadura, a partir do retorno à democracia ela melhorou graças ao seu retorno aos quartéis. Essa melhoria também foi favorecida pelo fato de que, como o país está fora de áreas de tensão e ameaça de conflitos no mundo, ele não apenas não dispõe de armas nucleares como, igualmente, deixou até mesmo de ser uma potência militar convencional, tornando-se incapaz de projetar poder para além de suas fronteiras.
Sem o hard power da força bélica, para participar das grandes decisões internacionais o Brasil teve, independentemente das diferenças de orientação dos governos do PSDB e do PT no campo da política externa, de recorrer ao soft power. Ou seja, a um poder de negociação e persuasão capaz de influenciar o comportamento e os interesses de outros corpos políticos por meio de fatores que vão do tamanho do seu território e sua população à extensão de seu mercado interno, passando pela sua força industrial, pela competência de seu sistema de desenvolvimento científico-tecnológico e por atributos intangíveis, como o prestígio de sua intelectualidade e o grau de respeito a determinados valores culturais.
A ascensão de Bolsonaro em 2018 trouxe novamente as Forças Armadas para o centro do poder – e, com tal intensidade, que levou a uma situação paradoxal, pois a expansão dos militares na burocracia do Executivo transbordou para outros Poderes. Eles passaram a contratar generais reformados para manter a autoridade institucional frente às ameaças presidenciais. O primeiro general que chefiou o Ministério da Defesa neste governo, por exemplo, foi contratado como diretor-geral do TSE, após Bolsonaro – que é candidato à reeleição – ter tentado desqualificar a corte e afrontado seu presidente.
Além disso, se entre 1964 e 1985 as Forças Armadas é que efetivamente mandaram, agora têm de se submeter a um tenente reformado como capitão que foi afastado do Exército por ser irresponsável e disfuncional. Em seus delírios de onipotência, o presidente converteu as Forças Armadas, ou parte delas, em braço auxiliar de um processo corrosão da ordem constitucional e da democracia. Basta ver as críticas que os generais do Planalto aos ministros do STF, acusando-os de “esticar a corda” só por declarar a inconstitucionalidade de atos do governo. Basta ver os discursos desses generais ao invocarem um hipotético “poder moderador” das Forças Armadas, esquecendo-se de que, quando elas ingressam na arena política com a pretensão de arbitrá-la, as lutas ideológicas se transpõem para os quartéis, rompendo os princípios da hierarquia e da obediência de uma instituição verticalizada. Basta ver, também, a atuação desses generais nas tentativas de neutralização dos órgãos de controle institucional, o desfile de blindados sucateados da Marinha em frente ao Palácio, em agosto de 2021 e as bobagens ditas em matéria de questões ambientais e proteção da Amazônia.
Esse tipo de atuação corrói a respeitabilidade das Forças Armadas. A maior mácula é a contradição entre os valores das corporações militares, que sempre enfatizaram a importância da ciência como instrumento de desenvolvimento, com o atual desprezo do governo pelo ensino público, com a asfixia financeira das agências de fomento à pesquisa e com o desmanche de institutos científicos. Os militares a serviço desse governo se esquecem de que, na economia, a negação de recursos à ciência acarreta perda de competitividade do país em um momento em que as disputas em um comércio globalizado se acirram. No campo político, o menosprezo pela produção do conhecimento dificulta a formação de uma política científica capaz de subsidiar um projeto de futuro para o país. No plano internacional, decisões como essas corroem o soft power do Brasil, tornando-o figurante na geopolítica mundial.
Se, entre 1945 e 1960 o desenvolvimento científico foi associado ao apoio das corporações militares à pesquisa em áreas estratégicas, como energia e informática, hoje o país paga o preço por ter um presidente incapaz de compreender que ciência é desenvolvimento e progresso. É soft power e, também, smart power. Por isso, como 40% de seu ministério é integrado por militares, dos quais um quase destruiu a saúde pública em meio a uma pandemia que já resultou em 620 mil mortos, a questão sobre a atuação recente das Forças Armadas não pode ser deixada de lado na campanha eleitoral. O que os candidatos de oposição têm a dizer sobre a reversão da militarização da máquina governamental no âmbito de um regime democrático cuja Constituição prevê o controle civil das Forças Armadas? Como pretendem proceder caso, no ambiente iliberal que será herdado de Bolsonaro, os militares não aceitem perder o sobrepeso político que obtiveram?
*José Eduardo Faria, professor da Faculdade de Direito da USP
Artigo publicado originalmente no portal do Jornal da USP
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Pazuello em ato político pró-Bolsonaro Foto: Reprodução CNN