A Comissão Arns recebe com profunda emoção a morte do poeta da esperança
Belisário dos Santos Jr.*
Em 18.01.2022
Faz escuro mas eu canto
Porque a manhã vai chegar
Thiago de Mello, após ser afastado do cargo diplomático de adido cultural no Chile, durante a ditadura militar, por abrigar refugiados brasileiros em sua casa, voltou ao Brasil, sendo imediatamente preso. Diz a lenda que encontrou desenhado nas paredes da cela seu verso mais famoso, que animou toda uma geração a fazer frente ao autoritarismo. Teve então a certeza de que sua palavra movia e acalentava os que resistiam.
Poeta da esperança, trazia em seus versos a imagem do menino, a ideia da primavera e a necessidade da alegria.
*Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.*
Vem-me agora à ideia o menino de vinte anos que, chamado à casa do amigo assassinado pelo regime militar, escolheu entre os seus livros, exatamente “Faz escuro, mas eu canto”… Ainda o manuseio de quando em vez, sempre emocionado, com o cuidado de quem tem nas mãos um papiro precioso, agora aberto na homenagem à vida verdadeira:
Vida que não se guarda, nem se esquiva, assustada, Vida sempre a serviço da vida.
Para servir ao que vale a pena e o preço do amor.
Thiago celebrava sempre o amor, mas tinha uma palavra de alerta aos que se esqueciam que o amor não é propriedade, não é fato consumado, mas antes o exercício constante de pequenos gestos verdadeiros.
Chega um dia em que o dia se termina
Antes que a noite caia inteiramente
Chega um dia em que a mão, já no caminho,
De repente se esquece do seu gesto.
Chega um dia em que o amor, que era infinito,
De repente se acaba, de repente.
Força é saber amar doce e constante
Com o encanto de rosa alta na haste,
Para que o amor ferido não se acabe
Na eternidade amarga de um instante.
Nunca se esqueçam, decretou o poeta:
Nunca amar sem amor!
Poeta da mudança concreta, da luta pelos direitos humanos e pelo meio ambiente, da necessidade de bater a injustiça, convocava:
*Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
A poesia de Thiago de Mello não era gratuita, era sempre, como diz o título de um livro seu, “Poesia comprometida com a minha vida e a tua vida”*.
Eu me pego pensando por um segundo se, algum dia, Dom Paulo Evaristo Arns e Thiago de Mello trocaram ideias, abraços, profetas da esperança e da palavra que eram. Talvez não. Mas a ideia matriz da esperança que pregaram nos incendiou a todos os defensores de direito,s tornando-nos e tornando-os irmãos, animando a todos a seguir incansáveis na ideia de criar o homem novo.
Falando sempre na alegoria do menino, rodando e cantando, Thiago de Mello parece temer:
O canto desse menino
Talvez tenha sido em vão
Mas ele fez o que pôde
Fez sobretudo o que sempre lhe mandava o coração…
Mas dúvida alguma tinha sobre a valia da poesia, justo ele que sabia da força arrebatadora da palavra, do convencimento, do verso, e que pôs em poema a canção da rebeldia
Que existe nos fonemas da alegria:
Canção de amor geral que eu vi crescer
Nos olhos do homem que aprendeu a ler.
Thiago de Mello se foi, durante a madrugada, dormindo, mas nos deixou o mote, a esperança, a garra de lutar por essa ideia que assusta o medo, que varre o escuro, que recupera a alegria e que dá sentido à vida, aprendizes todos da certeza de que:
A manhã vai chegar
*Belisário dos Santos Jr. – Advogado, atuou na defesa de presos e perseguidos políticos durante a ditadura civil-militar. Integra a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e a Comissão Internacional de Juristas. Presidiu a Associação de Advogados Latino-Americanos pela Defesa dos Direitos Humanos. Foi secretário da Administração Penitenciária (1995) e secretário de Justiça e da Defesa da Cidadania (1995-2000). Coordenou o Programa de Direitos Humanos no Estado do Estado de São Paulo (1997). Criou e presidiu a Comissão Estadual de Indenizações por Tortura. Integrou a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Estado Brasileiro (2002/2014). Também fez parte da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (1985-1990). Foi Presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e da Fundação Mário Covas. Foi vice-presidente e presidente da Comissão da Verdade da OAB-SP.
Artigo publicado originalmente no portal da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns.
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